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domingo, 3 de janeiro de 2021

Melhores leituras de 2020

 O ano foi de isolamento. Isso ajudou tirar da prateleira livros ainda não lidos, bem como se manter informado em leituras novas sobre assuntos bastante atuais.

Selecionei aqui 05 livros que mais gostei de ler em 2020. Dou uma rápida explicação sobre eles. Todos são facilmente encontrados em versões físicas e/ou digitais (no meu caso através do Kindle). Não está em ordem de preferência. Acontece que os temas são tão diversos que cada um deles eu gostei por razões diferentes.
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                                                              # Agricultura: Fatos e Mitos #
 
Três autores (dois deles grandes nomes na área: Xico Graziano e Décio Luiz Gazzoni) trazem uma série de fatos e mitos sobre a agricultura brasileira. É um livro incrível porque consegue com sucesso satisfazer uma demanda reprimida de divulgação científica séria sobre esse assunto. Na verdade os assuntos, pois são vários: 
desmatamento, pesticidas, orgânicos, transgênicos, etc. 
 
* Lembra aquela crença que alimento orgânico é sempre e inequivocadamente melhor que o alimento convencional ? É mito.
* Lembra aquela crença que o plantio transgênico aumentou a produtividade de várias plantações e não tem risco à saúde humana? É verdade.
* Lembra aquela crença que em 2019 houve aumento de desmatamento na Amazônia Legal? É verdade, porém o maior pico de desmatamento registrado em uma série histórica ocorreu em 2004.
 
E por aí vai. Cada uma dessas está recheado de evidências e citações na literatura.
 
 
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# Irreversible Damage #
(ainda sem tradução)
 
Talvez uma das coisas exageradas do livro é o título, pois pode impedir o primeiro acesso ao livro justamente de pessoas que mais precisam dele. De todo modo, o conteúdo é ótimo porque abre uma discussão importante. A escritora fez um trabalho de investigação, mantendo a compaixão que o assunto merece. O livro foca em crianças (não em adultos), sobretudo em meninas pré-púberes. O assunto pode ser explosivo para a cabeça de algumas pessoas, mas merece atenção e discussão. Por essa razão vou me prolonga rum pouco mais nesse livro.
Segundo a tese dela, uma espécie de epidemia silenciosa está se espalhando entre as adolescentes. Após um extenso levantamento de dados, nos é apresentado a uma suposta epidemia em garotas que, subitamente, sem qualquer sinal prévio, passam a se identificar como transgênero. Embora certamente haja casos reais de crianças transgêneros em tenra idade, o que tem sido observado é que as adolescentes estão sendo induzidas a aceitar a “transição de gênero” a partir de uma premissa bastante difundida em países ricos (EUA, Canadá, Inglaterra e Suécia) baseada no "consentimento informado", a qual se baseia única e exclusivamente na afirmação das garotas. Consultas psicológicas para avaliar outras possíveis causas de seus transtornos (como depressão, ansiedade ou déficit de atenção) são desencorajadas com ameaças, inclusive médicos tendo clínicas fechadas. Nos círculos mais progressistas uma pequena centelha de dúvida na palavra da criança pode virar acusação de transfobia, inclusive com perda de emprego.
Classicamente, a incidência esperada de disforia de gênero é algo entre 0,005 a 0,014% entre meninos. Em meninas é ainda menor: Entre 0,002 a 0,003%. Trocando em miúdos: Se esses dados são precisos, isso significa uma incidência da disforia clássica de menos de 1 em 10.000 pessoas. No entanto, na última década, conforme o livro discute, a disforia de gênero na adolescência parece ter aumentado expressivamente. Só nos EUA a prevalência aumentou em mais de 1.000 por cento. Ou seja: em vez de um caso a cada mil pessoas, como era de se esperar, estimativas sugerem um aumento de um a cada cinquenta. No outro lado do mundo, na Suécia, entre os anos de 2008 e 2018 houve um aumento de 1.500% em diagnósticos de disforia de gênero entre meninas de 13-17 anos de idade. Coisa similar foi constatado na Inglaterra.
Isso tudo saltou os olhos de muitas autoridades, inclusive pais, e a razão disso é a escalada que ocorre após a menina se reconhecer como menino: primeiro, a troca de pronome; depois, o uso de bloqueadores de hormônios; na sequência, uso de testosterona; e, por fim, cirurgia de remoção de mamas e/ou faloplastia. Isso tudo tem acontecido (pelo menos até a ingestão de testosterona) em meninas com idade a partir de 12 ou 13 anos. Algo que me chamou a atenção: O perfil da grande maioria desses casos são de meninas de classe média/alta, brancas, de família com valores progressistas e com elevado acesso diário a redes sociais.
É bem sabido que a disforia de gênero (pelo menos a clássica disforia) acomete principalmente os meninos e mesmo assim não em taxas elevadas como as que se tem visto hoje. Em um artigo científico recente publicada na renovada revista PLOS ONE, uma pesquisadora chamou esse novo fenômeno de "disforia de gênero de início rápido" (rapid onset of gender dysphoria). A questão é: essa nova disforia é uma coisa real? Talvez, ninguém tem a resposta final ainda. Tem muita coisa explanatória.
 
Algumas leituras extras:
Reportagem sobre os caso na Suécia: https://www.theguardian.com/.../ssweden-teenage...
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# The end of Gender #
(ainda sem tradução)
 
Na esteira do livro anterior, este da neuroscientista e sexóloga Debra Soh é, de certa forma, mais abrangente. O tema não é menos espinhoso também. Mas é mais espinhoso para quem está contaminado com a cabeça no ativismo identitário, vive no twitter, tumblr e só lê Judith Butler e/ou Foucault. No mundo real, eis alguns fatos discutidos no livro:
- Só existem dois sexos na natureza humana;
- Em mais de 99% das pessoas o gênero sexual é idêntico ao seu sexo;
- Sexo biológico não é um espectro (quem acredita nisso confunde característica sexual primária com característica sexual secundária);
- Sexo biológico não é definido através dos cromossomos (XX ou XY);
- Sexo biológico é definido pelos gametas. Na espécie humana só tem dois tipos: esperma e óvulo. Não existe intermediário.
- Reconhecer o fato acima não impede reconhecer a dignidade de pessoas transexuais, pois, sim, existem pessoas que caem nessa classificação, e isso não está em contradição com as afirmações anteriores;
- Pessoas intersexo existem, são em número bastante minoritário, e ainda assim a existência dessas pessoas não entra em conflito com as afirmações acima;
- Pessoas com o gênero identificado como demigênero-fluido, bigênero neutrois, demigirl, aliagender, pangender, demiboy e mais uns outros 70 possíveis (cada mês a lista aumenta) é um fenômeno curioso, mas é, provavelmente, coisa de ativista com pouca curiosidade sobre o mundo.
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# Janelas para a Filosofia #
 
Livros de divulgação científica modernos, em português, e de qualidade, ainda é coisa escasso no Brasil. Este aqui, feito em colaboração com um professor da Universidade de Ouro Preto (aliás, o professor
Desidério Murcho
é uma figura que merece ser seguida nas redes) tenta suprimir essa escassez. A obra é acessível para quem nunca leu algo sobre filosofia, e ainda deixa um gosto de querer mais. Os ensaios discutem temas como valores éticos (subjetivos e objetivos), valores políticos, fundamentos da fé, fundamentos do conhecimento e fundamentos estéticos. Enfim, vários temas de filosofia são explorados aqui. E ainda consegue oferecer um texto que não busca fazer proselitismo em nenhum dos assuntos. Na medida do possível, apresenta sempre uma ou duas versões de pontos e contrapontos de uma posição.
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# Os cinco convites #
 
Descobri esse livro acidentalmente, durante um episódio do podcast do Sam Harris entrevistando o Frank Ostaseski. Frank foi fundador do Zen Hospice Project em San Francisco. Nesse lugar dedicou boa parte da vida explorando o cuidado compassivo em pacientes em estado terminal. Não foram poucas as vezes que eu deixar me levar na emoção dos casos contado pelo Frank. O fim da vida, da nossa ou de entes queridos, nos convida a receber a refletir sobre situações que poucas vezes nos deparamos. Seu livro nos oferece cinco convites para participar desse processo inevitável: Não espere; aceite tudo, não rejeite nada; traga tudo de si para a experiência; encontre um lugar de descanso no meio de tudo e cultive o não saber. Além de nos brindar com conselhos teóricos que valem a pena ser seguidos, nos incentiva a prática da meditação mindfulness. A leitura foi muito agradável.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Ateísmo, Deus e Ética


                                                                                            Originalmente publicado no Bule Voador


Pintura do francês Alexandre-Louis Leloir - Jacó lutando com o anjo, suplicando sua bênção


Como pessoas ateias agem moralmente se a presença de Deus é irrelevante em seu cotidiano? Antes de acusar o bom teísta de preconceito é possível mostrar-lhe que sua ideia sobre ausência de moral na ausência de Deus está equivocada.
Imagine 02 experimentos mentais, e para cada um deles duas possíveis ações:
  1. Maria é casada e frequenta uma academia. Por motivos irrelevantes aqui, considere que seu marido nunca a acompanha nesta atividade. Um homem solteiro se aproxima dela e começa um diálogo. Passados alguns dias, e outros papos, o homem a convida para sair. Ele sabe, entretanto, que Maria é casada. Ela reforça esse detalhe, e mesmo assim ele insiste.
Ação A: sentindo-se incomodada, Maria decide se afastar do homem e troca de academia.
Ação B: Maria cede e acaba traindo o marido.
  1. João está enfurecido com alguém por uma razão banal: Não conseguiu controla-se pelo simples motivo de ter recentemente conhecido uma pessoa da qual discordou dele de vários aspectos políticos atuais.
Ação A: João consegue esfriar a cabeça ao decidir dar uma volta na quadra.
Ação B: João pega numa arma e mata seu interlocutor.
Nos dois exemplos a ação A seria uma das possíveis esperadas naquilo que a maioria das pessoas considera como moralmente correto. Traição e assassinato por razões fúteis são atitudes normalmente tomadas como desprezíveis.
Faço a pergunta: Nos dois casos, por qual razão seria necessário invocar alguma entidade divina para justificar a ação A em detrimento da ação B. Mesmo assumindo que o teísta consiga parar para pensar nos mandamentos em uma situação de vulnerabilidade emotiva, não é óbvio que a crença na existência em Deus seja condição necessária para ações morais corretas. O que está em causa é o seguinte: Até pode ser o caso de em alguma medida a crença em Deus ser relevante para a tomada de ações éticas, mas não é o caso que a crença na sua inexistência (um ateu) impeça da pessoa decidir pela ação A.
Comumente se insiste que ateus são incapazes de agir moralmente. Isso parece assumir que há uma correlação positiva entre acreditar em Deus e ser uma pessoa ética, ou, nas palavras de muitos, que há uma correlação positiva entre ser um ateu e ser infeliz e imoral. Se isso fosse verdade os países escandinavos (como Suécia, Dinamarca e Finlândia que possuem um número expressivo de pessoas declaradas ateias) estariam sempre no topo da lista dos países mais violentos e mais infelizes. O que se vê é justamente o contrário. Acontece que tomar estes dados e assumir (pelo menos a priori) que pessoas ateias são mais felizes e moralmente mais virtuosas está tão equivocado como assumir que pessoas religiosas são mais propensas a serem mais felizes e mais virtuosas pela mera razão de acreditarem em um Deus. Que o ser humano é um mosaico de complexidade psicológica já deveria ser claro. O que é espantoso é a permanência da ideia  falsa que alega impossibilidade de ações morais para a pessoa ateia.
Para quem não consegue vislumbrar a possibilidade de ações morais sem a presença de Deus está desconhecendo o mínimo de um trabalho filosófico extensamente elaborado ao longo da história intelectual humana. Colocando de outra forma a pergunta do teísta: Como seria possível as ações A dos exemplos supracitados se uma pessoa “não tem Deus no coração”? Bem, existem ao menos quatro teses morais que, embora diferenciadas em detalhes, chegariam no mesmo resultado moral. Destas, só uma assume a existência de Deus. Estas éticas são: a cristã, das virtudes, a deontológica/Kantiana e a utilitarista/consequencialista. Com pouca reflexão é possível defender que as ações A são as mais corretas nestas quatro teses éticas. O que fica logo evidente é que a existência de Deus é um tanto irrelevante (mesmo que ele exista) para que pessoas possam agir moralmente.
Não estou assumindo que todas as pessoas ateias conhecem minimamente as teses morais que prescindem da existência de Deus para funcionarem. Mas estou a dizer que uma das coisas que os filósofos eticistas fazem é tentar encontrar razões que normatizam como as pessoas agem (ou deveriam agir) moralmente, mesmo que muitas vezes elas nem saibam como justificar à luz de teses morais o porquê de escolherem a ação A ao invés da B.

Por fim uma alfinetada inevitável: Paulo de Tarso é muitas vezes apontado como um misógino e homofóbico e alegava que só haveria salvação para aquele que aceitar os dogmas sobrenaturais do cristianismo. É verdade, entretanto, que há outros que dirão o diferente: O que importa são as ações, então um ateu com boas ações poderá ir para o céu. Essa defesa, entretanto, embora mais respeitável que a postura de Tarso, desemboca na mesma independência de Deus comentada acima. Você até pode ser uma pessoa melhor acreditando em Deus, mas disso não se segue que será uma pessoa ruim caso não acredite. Se ao ateu não é garantido a salvação cristã (assumindo que isso seja sequer relevante para ele), então eu diria os cristãos: Seja cético com seu Deus, no mínimo ele não gosta muito de pessoas que são curiosas e questionam a existência de uma entidade que não parece fazer muito esforço para mostrar sua existência óbvia no mundo.

domingo, 8 de novembro de 2015

Sobre as intervenções ativistas nas universidades

Fonte: iStock Vectors / Getty Images *As frases são de coletivos de universidades brasileiras

[Originalmente publicado no blog Bule Voador]

 Com frequência, temos visto nas universidades atos conhecido como “intervenções”, “performances” ou “problematizações”. Seja em nome de causas feministas ou por questões de gênero, há algo em comum nesses eventos. Apostam em uma espécie de impacto visual para chamar atenção à sua causa: pessoas aparecem nuas dançando ou se banhando em óleo; outras vezes urinam em baldes e ameaçam transeuntes; masturbam-se em público; ecoam gritos contra o patriarcado ou contra imposições de gênero. Causam ao mesmo tempo estranheza e adoração. O que está em jogo é algo defensável: tentar minimizar preconceitos enraizados na sociedade, como o machismo, homofobia, transfobia e racismo. Portanto a questão seguinte merece atenção: as intervenções ativistas vistas nesses locais contribuem de alguma maneira à causa defendida?
     Primeiramente, é necessário reconhecer a necessidade de sensibilizar cognitivamente as pessoas pertencentes do grupo ao qual é desejado persuadir. Se o ativismo praticado é aquele que pressupõe eficácia por adesão numérica de pessoas através de suas performances em detrimento de argumentos, isso implica em desacreditar na possibilidade de chegar a resultados relativamente consensuais usando argumentos com premissas universais (tanto quanto possíveis) nos quais todas as pessoas possam aceitar. Isso não significa minimizar a arte como força revolucionária -- só implica que a qualidade de suas premissas não é proporcional às apresentações esdrúxulas. Ora, se em um argumento dedutivamente válido é considerado cogente (um bom argumento) quando as premissas são verdadeiras e são mais plausíveis que a conclusão, é razoável o paralelo que uma performance ativista pretendendo entregar uma mensagem proposicional (a saber, agir ou pensar de tal forma é moralmente errado) deve ter suas ações pautadas de maneira mais moderada do que a mensagem final desejada (pelo menos para o estado cognitivo do receptor). Em outras palavras, causar estranheza ao seu público alvo não parece uma maneira eficaz de transmitir ideias.
     Para fins ativistas, é razoável defender uma união entre manifestações artística e argumentação dedutiva. O ponto central é: a performance e/ou as premissas dos argumentos deve ser suficientemente convincente para atingir seu público alvo. Um argumento pode ser válido e concomitantemente ruim; da mesma forma, a performance pode alcançar um público numeroso e mostrar-se igualmente ser ruim. E é ruim quando falha precisamente por convencer o receptor da importância do seu ato.
     Que um argumento pode ser logicamente válido e ao mesmo tempo ruim é ponto pacífico para quem tem minimamente um estudo sobre lógica dedutiva. Detenho-me então na seguinte afirmação: independente da extravagância ou moderação visual de sua performance, ela só terá eficácia se o se ato for mais palatável para o destinatário do que para emissor; o último já está convencido da importância da sua finalidade, então é o primeiro que merece maior atenção.
      E como defender a afirmação acima? A resposta precisa contemplar a tese que entende como positiva as manifestações com performances transformadoras, com consequente adesão a determinada causa. Essa é uma tese empírica, e, portanto merece uma investigação igualmente empírica. As evidências alertam para a pouca eficácia da performance agressiva e excêntrica. Inúmeros estudos têm mostrado que incutir alguma mudança efetiva no comportamento moral das pessoas pode ser feita através da exposição interpessoal de cunho afetivo. Por exemplo, a convivência com gays próximos, parentes ou amigos, tem mostrado mais disposição das pessoas em minimizar seus comportamentos homofóbicos. Grosso modo, isso é o que pesquisadores nas áreas de psicologia e sociologia chamam de hipótese do contato – cujos resultados de estudos têm demonstrado que atitudes mais favoráveis a gays podem ser conseguidas quando grupos potencialmente homofóbicos têm experiências positivas com gays. Evidências também mostram melhoria de integração por contato inter-grupos para os casos de muçulmanos na Europa, para pessoas negras e para etnias sociais.
     Não há evidências de que atos com padrão visualmente agressivo, grotesco e/ou excêntrico incentive alguém mudar seu pensamento e comportamento moral. Temos razões para acreditar precisamente o contrário: segundo o estudo da Bashir e colaboradores, é comum pessoas evitarem se afiliar com ativistas por os enxergarem como militantes/agressivas e excêntricas/não-convencionais. Essa tendência de atribuir estereótipos negativos faz com pessoas sintam-se desconfortáveis em aderirem às motivações de mudança que os ativistas advogam. Se a conclusão está correta, a mensagem é cristalina: pessoas depositam estereótipos fortemente negativos sobre ativistas, e esses sentimentos reduzem sua vontade de apoiar aquilo pretendido por eles. Isso não sugere que tudo está perdido nas causas ativistas. Esse mesmo artigo sugere que pessoas foram mais motivadas a adotar comportamentos alinhados aos ativistas quando eles demonstram menos aspereza. Ainda nas palavras da autora, "convertidos" em potencial para a sua causa "podem ser mais receptivos a ativistas que desafiam os estereótipos ao se mostrarem como agradáveis e amigáveis". Outra forma de sensibilizar seu público-alvo é expor argumentos e evidências científicas sobre o assunto em causa.
     A resistência individual para a mudança social é mais difícil do que parece supor os ativistas performativos: um estudo projetado para medir a minimização de estereótipos e preconceitos em proporções populacionais falhou em diminuir os níveis de antagonismos após a implementação de um programa com acompanhamento; embora nos primeiros dias após a intervenção os níveis de preconceito medido tenham diminuído, após 3 meses voltou às condições iniciais. E embora as políticas de intervenções de redução de intolerância abundem, tem-se visto que, ironicamente, o efeito final possa resultar em exatamente o contrário do inicialmente pretendido. Nesse sentido, promoção da autonomia regulada de preconceitos (ou seja, encorajamento pessoal do valor da diversidade e autonomia) parece ser mais eficiente do que apenas pressão social (como linguagem agressiva) pura e simplesmente.
     Manifestantes dos atos de performances vangloriam-se que estão "causando", e assim acreditam que terão mais pessoas adeptas à sua causa. Entretanto acreditar nisso esbarra em um efeito limitante: só os iniciados comprarão a ideia -- talvez funcione para pessoas que não tinham encontrado ainda um terreno confortável para se manifestar, e enxergam nesses atos uma espécie de libertação epistêmica. Por outro lado, há algo de pernicioso e equivocado nessas ações. Elas parecem estar preocupadas mais com contagem de auditório do que qualidade de argumentos. Parece estar implícito que chocar pessoas com imagens pouco convencionais daquilo que se espera do cotidiano tenha alguma força, se não argumentativa, pelo menos de adesão à causa -- fomentando assim a reflexão futura. Tendo em vista a literatura recente, estas tentativas de promoção de igualdade não tenderão a gerar bons frutos.
     É importante reconhecer a potencialidade das ciências sociais em discutir publicamente a minimização de preconceitos. Em tese, essa é uma das tarefas da academia. A pergunta é: as pessoas ativistas estão sendo atualizadas com dados empíricos sobre o que tem sido feito em pesquisas que envolvem a percepção social sobre grupos minoritários? E mais, estão atualizadas sobre as evidências empíricas de vieses implícitos, e sobre o reforço de estereótipo negativo em manifestações de ativistas? A julgar pelas performances surgindo nas universidades a resposta é não.

domingo, 11 de outubro de 2015

Local de fala, protagonismo e privilégio à luz da epistemologia



[Originalmente postado no blog Bule Voador]
Em filosofia, a epistemologia (teoria do conhecimento) dedica-se a estudar questões do tipo: qual a origem do conhecimento? Qual relação entre conhecimento e certeza, e entre o conhecimento e a impossibilidade do erro? Qual o papel da experiência e da razão na geração do conhecimento?
    É necessário, primeiro, determinar o significado de conhecimento. Como todo o conhecimento é uma relação entre um agente e um objeto, diferentes tipos de conhecimentos são concebíveis. Se alguém alega saber andar de bicicleta, nadar, ou preparar uma deliciosa sobremesa é porque esta pessoa tem o conhecimento de como efetuar uma ação. É um saber-fazer — sendo este o nome dado a este tipo específico de conhecimento prático. Outro tipo: Posso manifestar minha experiência direta com pessoas famosas, ou locais famosos. Se alguém diz que mora em Paris há anos, então é provável que esta pessoa conheça bem a cidade. A este tipo damos o nome de conhecimento por contato.
    Um terceiro tipo — de maior interesse para a filosofia –, é o conhecimento proposicional. Nesse caso, estamos interessados em uma proposição: uma pessoa pode afirmar saber que Paris é a capital da França, sem ser necessário que a tenha visitado. Tradicionalmente, a maneira de abordar conhecimento proposicional é tentar encontrar condições necessárias e suficientes que possam defini-lo. Embora os filósofos ainda discordem (veja o problema de Gettier), uma tentativa de entender conhecimento proposicional é estabelecê-lo como sendo uma crença verdadeira e justificada (convenientemente chamada de definição tripartida). Explorar detalhes desta definição está além do objetivo do presente texto, mas é necessário ter em mente o seguinte: a investigação do conhecimento proposicional (como a alegação de uma pessoa que supostamente diz uma verdade) independe de características intrínsecas do receptor. Dito de outro modo: o acesso à informação (ou conhecimento, se esta informação for verdadeira e justificada), pode ser igualmente perscrutado por qualquer ser humano, não importando sua cor de pele, orientação sexual, identidade de gênero, opção religiosa, etc.
    À luz da teoria do conhecimento, é possível existir algum sentido nos excessos (aparentemente banalizados) os quais têm proclamado “protagonismo e local de fala do oprimido”? Em certo sentido sim: caso alguém limite o acesso ao conhecimento humano somente através do conhecimento por contato e saber-fazer. Sobretudo o primeiro, poderia ser mais ou menos equivalente ao que é alegado de “vivência do oprimido”. Algumas vertentes são ainda mais pontuais: Só a mulher pode combater o machismo, porque só ela sabe o que é sofrer na sociedade patriarcal; só o homossexual pode lidar com a opressão contra os gays, pois só eles sabem o que é viver na pele a homofobia. Resumindo, o protagonismo é do oprimido. Uma consequência disso, muitas vezes, é apelar para alguma espécie de privilégio epistêmico. Ou seja, que grupos oprimidos teriam acesso privilegiado da verdade (no caso, a verdade seria o acesso à informação da opressão). Entretanto, há algo de filosoficamente pueril defender que o conhecimento só pode ser alcançado por experiências de contato. Como já assinalou a filósofa Susan Haack, as teses baseadas na ideia que a opressão fornece privilégio epistêmico ao oprimido são implausíveis. Se estivessem certas, os grupos mais desfavorecidos resultariam nos melhores cientistas; talvez o contrário: os oprimidos e socialmente marginalizados muitas vezes têm pouco acesso à informação e educação para lhe garantirem destaque em ciência, dessa forma os levando a uma situação de “desvantagem epistêmica”.
    A experiência humana, entretanto, é muito mais complexa. Resumir o mundo entre opressores e oprimidos, conhecedores e não conhecedores (por contato), é falhar em reconhecer que conhecimento proposicional tem um potencial papel relevante no que diz respeito a investigações de verdades no mundo, e que não pode ser desprezado. Ignorar conhecimento proposicional pode dar margem a acusações falaciosas como aquele que julga toda a violência contra a mulher tendo origem na sociedade patriarcal: tem sido evidenciado que, em determinadas condições de relacionamentos, mulheres podem ser igualmente ou mais violentas que os homens. É irrelevante que quem alegou isso foi uma mulher ou um homem branco cissexual. O que está sendo mostrado nestes estudos é algo pretendido a ser como conhecimento proposicional, e, portanto o escrutínio cabe focando-se na metodologia da pesquisa, e não sobre o sexo do pesquisador. Fechar os olhos para o conhecimento proposicional pode correr o risco de alimentar um ativismo mal informado: mais de décadas de acúmulo de evidencias em psicologia apontam que pessoas, independentemente de seus grupos, guardam em média vieses contra seus próprios grupos. São vieses implícitos que podem (em maior ou menor grau) fazer com que homossexuais sejam homofóbicos, ou mulheres machistas. O que todas estas pesquisas têm mostrado é que preconceito é um aspecto da vida mental e sendo assim pode ser objetivamente estudado. Trocar conhecimento proposicional por “vivência” é endossar alguma espécie de irracionalismo, ou até mesmo subjetivismo da pior espécie.
    Parece razoável que um homem heterossexual não sofra homofobia, mas não é razoável defender uma tese no sentido de impossibilitar este homem de conhecer (no sentido proposicional) que a homofobia existe, é algo ruim e deve ser combatida. O que parece estar em causa é: o conhecimento por contato (no sentido de “vivência”) pode ser uma condição facilitadora, mas não é uma condição necessária (nem suficiente) para reconhecer mecanismos de opressão na sociedade. Somando-se a isso, se alguém está interessado em resolver injustiças sociais por meios éticos, sugerir alternativas racionais para saná-las parece exigir muito mais conhecimento proposicional sobre o mundo do que conhecimento por contato. E este conhecimento não deriva apenas das ciências empíricas. A própria reflexão ética é baseada por proposições, sem necessidade de depender única e exclusivamente de locais de falas da vivência do oprimido. Ativismo maduro — eticamente engajado e cientificamente informado –, é muito antes checar os fatos (ou proposições) do que checar os privilégios (ou suas vivências).

domingo, 21 de junho de 2015

Um pouco sobre Direitos Humanos

Texto originalmente publicado no blog oficial da Liga Humanista do Brasil (Bule Voador)

“O sentimento vingativo que se denomina indignação moral não passa de uma forma de crueldade (…) pensar o criminoso como objeto de execração é totalmente irracional.”
Bertrand Russel

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Não parece por acaso que dentre os países com os melhores indicadores sociais encontram-se aqueles que mais zelam por liberdades individuais. Estudos nas áreas sociais têm apontado que as nações com maiores expectativas de vida, melhores níveis de alfabetização, educação e renda, são mais sensíveis a provocarem sentimento de autorrealização, e portanto felicidade [1]. E que as diferenças de personalidades entre homens e mulheres são maiores e mais robustas nos países mais prósperos e igualitários [2]. Por exemplo, é notório que a legalização do casamento gay é uma característica destes países, ou, no mínimo, é uma tendência que estes países estejam dispostos a debater e rever suas posições sobre o assunto (vide o referendo sobre o casamento homossexual recentemente na Irlanda). Acontece que para atingir este reconhecimento em qualidade de vida é necessário, ou no mínimo facilitador, que estas sociedades sejam comprometidas com Direitos Humanos.
E não é o caso que não se tente aqui no Brasil. De fato, há tentativas governamentais e não governamentais que lutam em prol de uma sociedade melhor, pautada por respeito aos direitos humanos. Infelizmente, e aqui a situação começa a se agravar, falar sobre direitos universalizantes no Brasil parece, para muitos, a se resumir em frases preguiçosas e mal informadas do tipo “defesa para bandido” ou “direitos humanos para humanos direitos”. Parte desta tentativa apressada e seletiva no que diz respeito a defesa de direitos básicos parece ser advinda da mal compreensão do que significa defender direitos universalizantes.

Grosso modo, direitos humanos são direitos que atribuímos uns aos outros independentemente de acordos pessoais e de determinações legais, ou seja, é entender que estes direitos não dependem de nacionalidade, classe social, etnia ou da vontade da maioria. São, antes de tudo, direitos morais no sentido de garantir a satisfação de condições mínimas para a realização de uma vida digna, e que consideram que qualquer indivíduo possa satisfazer suas necessidades básicas (como alimentação e assistência médica básica). É por isso que cercear a liberdade de um criminoso não implica em ter de deixá-lo em condições miseráveis correndo risco de morte em um cárcere. Reconhecer direitos humanos não significa defender a tese que criminosos não devem ser punidos; por outro lado, não defende-se a punição de um crime por tráfico de drogas com a morte do indivíduo. E que “justiça” feita com a próprias mãos pode ser qualquer coisa (vingança, provavelmente), menos justiça. Entre outras coisas, também a declaração mais recente dos direitos humanos foi criada como uma reação a uma das maiores barbáries em toda a História, na qual mais de 45 milhões de pessoas foram mortas em conflitos envolvendo regimes totalitários. O lado mais assustador disso é que boa parte das mortes não se deu no campo de batalhas, mas foram mortas por seus próprios Estados que lhe tiraram as condição de sujeitos de direitos. É nesse sentido que garantir direitos humanos também é fornecer um mecanismo de prevenção contra um eventual poder excessivo do Estado.

É sintomático que parte do público que desconhece minimamente o que é direitos humanos inclua as pessoas dispostas a relativizar qualquer assunto que envolva temas sobre a moral, e não raro são as mesmas que desprezam a argumentação às suas ideias, contentando-se simplesmente a manifestar um relativismo moral raso e/ou discursos de ódio. Entretanto, e há boas razões para afirmar isso, o relativismo cultural é incompatível com a tese de direitos humanos universalizantes [3]. Um problema similar, com causas no desconhecimento do assunto, acontece com as frases que colocam a falsa dialética “direitos humanos para bandidos ou para a vítima?”. Conforme já discutido em outro momento, a questão aqui não é de mérito (tampouco de conquista), mas de direito, e que endossar esse tipo de dilema é apenas contribuir para um debate mal informado e pautado na ânsia de satisfazer seus próprios instintos destrutivos.

O apelo a maioria é um ponto crucial quando falamos em direitos universais. É irrelevante se a maioria é contra a permissão da mulher decidir interromper uma gravidez; não é relevante que a maioria de uma população seja contra a mutilação de genitálias em mulheres para que isso seja combatido; é desnecessário exigir que políticas de casamentos civis do mesmo sexo tenham a aprovação da maioria. No momento que há disposição em aderir a teses universais, não é a maioria quem decide estas questões. Decisões deste tipo devem ser pautadas por reflexões éticas e evidências empíricas [4]. São considerações deste tipo que devem anteceder a aprovação de uma lei, e não a aprovação de uma lei que define o que é ou não ético.

Ampliar direitos de minorias sociais é tornar um mundo melhor, e isso não tira direitos de quem já os possui. E num país onde boa parte da população é mal informada sobre assuntos de ética e direitos universalizantes, é um indicativo que muito ainda temos para divulgar e estudar sobre estes assuntos.
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Notas

1. Há várias definições possíveis para o termo “indicadores sociais”. Para o meu propósito, refiro-me a alguns dados empíricos que são facilmente acessíveis de diversos países. Por exemplo, o portal da OECD (Organisation for Economic Co-operation and Development ) fornece uma interessante ferramenta na qual é possível visualizar e comparar alguns dos fatores centrais – tais como escolaridade, moradia, meio ambiente, etc (acesse aqui, em português). Ao simular o efeito da diferença de gêneros sobre alguns quesitos (em máxima importância), como renda, educação, trabalho e satisfação pessoal, nota-se que o México, Turquia e o Brasil não apenas apresentam os mais baixos valores para os quesitos simulados como também as maiores diferenças entre homens e mulheres. Países como Dinamarca, Suécia, Estados Unidos e Suíça apresentam os melhores valores dos quesitos, e também as menores diferenças nos valores dos índices comparando homens e mulheres.
Aqui, eu entendo o termo “liberdade individual” como garantias civis para que um indivíduo possa ter livre expressão de gênero sexual, confissão de crença e de expressão. Países que impedem algumas dessas garantias são, geralmente, os que apresentam os piores índices sociais. Assim, é importante reconhecer que desenvolvimento econômico (e liberdade econômica) é uma condição necessária mas não suficiente para o progresso social.

2. Costa, P.T. Jr.; Terracciano, A.; McCrae, R.R. (2001). “Gender Differences in Personality Traits Across Cultures: Robust and Surprising Findings“. Journal of Personality and Social Psychology 81 (2): 322–331. doi:10.1037/0022-3514.81.2.322. PMID 11519935.


4. Nos últimos anos, alguns autores contaminados em alguma medida pelo cientificismo têm lançados livros que defendem a tese que a ciência sozinha pode dar conta de determinar quais são os valores humanos dignos de atenção. Em outras palavras, que não há muito espaço para reflexões filosóficas (Vide Sam Harris e Michael Shermer, nos livros A paisagem Moral e The Moral Arc: How Science and Reason Lead Humanity toward Truth, Justice, and Freedom, respectivamente). O que é curioso, já que qualquer reflexão ética é por natureza uma exercício filosófico. O que está em causa é o seguinte: Dados empíricos são relevantes mas não determinam uma resposta única. Tanto a ciência e filosofia precisam operar em conjunto. Em alguns casos, a ciência é muito mais descritiva do que normativa. Não precisamos entender profundamente de neurociência para defender a tese que a mutilação genital é eticamente condenável. No vídeo, quando Michael Shermer tropeçava em conceitos básicos, Massimo Pigliucci foi claro em defender o que está em jogo na confusão cientificista destes autores.

sábado, 27 de setembro de 2014

O bem humano e a felicidade aristotélica



(A Helping Hand, de Émile Renouf)

 "A vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre"
(Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres - Clarice Lispector)

Talvez com uma ênfase maior que os demais filósofos, Aristóteles preocupou-se em responder o que é o bem humano. Dessa forma, o grego influenciou muitos pensadores e ainda hoje é objetivo de interesse reflexivo sobre um tema caro à nossa sociedade: a felicidade humana.
Tomando um exemplo motivacional, a seguinte situação prática é proposta: Um nadador amador, mas com capacidade suficiente para reconhecer locais perigosos, presencia um indivíduo em afogamento. No caso, nosso nadador é o agente moral e salvar a pessoa é o fim desejado. Considerando sua experiência prática, ele reconhece que tem condições de ajudar a pessoa em apuros. Duas situações podem acontecer:
Agente moral (i) - No momento em que o andador chegava para socorrer, um tronco de árvore que passava no interior do rio atingiu a pessoa em afogamento; eventualmente, ela acabou morrendo.
Agente moral (ii) - O nadador conseguiu salvar com êxito o indivíduo que se afogava.

Dentro do contexto aristotélico, pode-se perguntar o seguinte: Os dois agentes morais são virtuosos? Quais dos dois é mais virtuoso? Algum dos agentes é mais feliz que o outro? Qual a relação entre felicidade e virtude?

Aristóteles reconhecia a experiência humana como ponto de partida. Afim de entender com mais detalhes o que está inserido no contexto de "vida humana" faz-se necessário explorar um pouco o que o grego entendia como vida prática. Em "Ética a Nicômaco", Aristóteles começa ressaltando que as nossas ações se dão de modo dependente uma das outras, ou seja, fazemos coisas (escolhas, buscas ou ações) que visam a algum bem. E, mais do que isso, há um bem último ao qual todas as coisas visam:

"Toda a arte e toda a investigação, e similarmente toda a ação e escolha, parecem visar um qualquer bem; de acordo com isto, declarou-se corretamente que o bem é aquilo que todas as coisas visam." (Ética a Nicômaco 1094a 1-3)

Importante destacar que para Aristóteles há uma convertibilidade entre bem e fim -- ou seja, a concepção do bem é teleológica. Dito de outro modo, para o ser humano alcançar o que é bom para ele, precisa tomar o bom como uma finalidade. Isso é particularmente relevante na ética aristotélica, pois reconhecer algo como bom não implica tomar algo para si como bom. Vale destacar, novamente, que toda escolha visa um bem. Dito isso, Aristóteles divide o bem (o fim) em instrumental e intrínseco. O primeiro caracteriza-se como algo que busco em função daquilo que posso alcançar com essa através dele (exemplo: dinheiro), e o segundo eu busco por ele mesmo, ou seja, tem valor por si (exemplo: conhecimento). Entretanto, um bem ser intrínseco não impede que também seja instrumental. Consequentemente, Aristóteles defende a existência de um fim "finalíssimo" -- aquele que nunca é desejável em vista de outros fins --, que é precisamente aquela finalidade a qual atende a dois critérios, a saber: i) completude e ii) autossuficiência. O primeiro diz respeito a coisas que mereçam ser buscadas por elas mesmas, enquanto que a segunda é aquilo que quando isolado torna a vida desejável e carente de nada. Dito dessa forma, o critério ii) segue-se necessariamente de i).
Aristóteles identifica a felicidade (“eudaimonia”) como o único bem que pode ser completo e autossuficiente. Em outras, a felicidade (embora esse termo seja um pouco problemático enquanto tradução de “eudaimonia”) é o bem supremo. Nesse contexto, a virtude é uma condição necessária, mas não suficiente no intento de atingir o bem maior.
Outro ponto de esclarecimento acerca da natureza da felicidade merece destaque. Aristóteles nega a equivalência de felicidade com dinheiro, honra e/ou prazer físico. Disso não se segue que tais elementos não são importantes, apenas não devem ser a razão principal pela qual nossas ações são direcionadas. Dessa maneira, o que é realmente bom para o ser humano é determinado por aquilo que os seres humanos são por natureza (Shields, C.). Um bom ser humano é aquele que executa bem a função humana. E essa função é estruturada na noção teleológica que Aristóteles assume.

Dizer que a felicidade é o bem mais elevado talvez pareça uma trivialidade e o que se quer é uma expressão muito mais clara do que é tal coisa. Talvez isto surja caso se identifique a função (ergon) de um ser humano. Pois tal como o bem, e o bom sucesso, de um flautista, de uma estátua e de todo o tipo de profissão — e, em geral, de seja o que for que tenha uma função e uma ação característica — parece depender da função, o mesmo parece verdade no que respeita ao ser humano, se de facto um ser humano tiver uma função.” (Ética a Nicômaco 1097b 22-1098a 4)

            De maneira sucinta, o argumento da função toma como premissa que a atividade característica dos seres humanos é o raciocínio. O objetivo é tornar mais claro o que é o bem humano. Como já dito, Aristóteles defendia uma noção teleológica, e, nesse caso, as coisas têm, em geral, uma função. Assim, o bom exercício dessa função está relacionado ao sucesso do ser do qual ela é função. Fazer algo bem é equivalente a fazer isso de acordo com a excelência própria da atividade (Lawrence, G.). Destarte, a vida humana deve ser algum tipo de vida ativa constituída de razão, pois essa é algo próprio e exclusivo ao ser humano.Vale lembrar, portanto, a definição canônica do bem humano (Ética a Nicômaco 1098a 161-17):

O bem humano é uma atividade da alma(1) que exprime a razão de um modo virtuoso.

A metafísica aristotélica defende que a virtude moral é a perfeição da parte desiderativa da alma2. Essa observação, embora relevante, pode ser melhor entendida se nos deteremos um pouco mais na virtude moral. Esta é em vista da eudaimonia – ou seja, a virtude é consequência das ações, e não o objetivo3, no sentido de que ser virtuoso é condicionada à eudaimonia. O objetivo é a eudaimonia. Assim, devemos enfatizar que ser virtuoso não é condição suficiente para ser feliz; naturalmente há fatores externos, tais como amigos, beleza, uma condição financeira satisfatória, etc. Ser virtuoso é uma prática que leva a um hábito, ou a uma capacidade de desejar ações boas. Parte disso explica a atenção de Aristóteles no educador moral. A presença deste seria uma condição facilitadora para tornar o indivíduo virtuoso.
Uma vez entendido que o bem do humano é a atividade racional segundo a virtude, é útil, nesse ponto, trazer à tona o conceito de deliberação e como este se relaciona com a felicidade. Deliberar pode ser entendida como um processo racional que considera alternativas em vista de um fim factível (realizável). Ou, ainda, deliberar é um processo racional em vista de um fim. Assim, lembremos a tese aristotélica: "Deliberamos não sobre os fins, mas apenas sobre os meios." Nesse sentido, a felicidade é a única coisa que nunca pode ser meio – ou seja, não deliberamos sobre sermos felizes (uma maneira branda de entender isso é que todos os indivíduos querem ser felizes). Entretanto, deve ficar claro que deliberamos, sim, sobre os atos que compõe a felicidade. Dessa forma, embora não entremos em detalhes, é relevante pontuar que a deliberação é consequência daquilo que Aristóteles chamava de razão prática. Mais ainda, sendo a eudaimonia aquilo o que é bom para o ser humano, aquele que melhor determina isso é o sábio prático.
A sabedoria prática seria uma espécie de guia para que o indivíduo identificasse o bem maior de maneira correta. Desse modo, a incapacidade de organizar e planejar a vida para alcançar um único fim se deve a ausência da sabedoria prática; escolher fins ruins, ou inadequados (como prazer ou dinheiro), também revela alguma deficiência dessa sabedoria. Grosso modo, o sábio prático é capaz de identificar os melhores meios que conduzem a um bom fim (deliberação).
Nas palavras de Ackrill, a virtude moral (a excelência do caráter)  é uma mediana determinada pelo padrão seguindo aquilo que o sábio prático empregaria. Essa observação fica mais clara ao recordarmos a importante tese defendida por Aristóteles: a sabedoria prática implica necessariamente virtude moral, e vice-versa. Embora já tenha sido apresentado indicativos, é relevante destacar que uma não é a mesma coisa que a outra (identidade). É nesse sentido, também, que Aristóteles enfatiza o aspecto prático da aquisição das virtudes morais. A questão é que não há como tornar-se virtuoso moral sem, ao mesmo tempo, adquirir sabedoria prática. Além disso, a sagacidade é uma condição necessária para a sabedoria prática: Ela (sagacidade) é tida como a habilidade de colocar em prática escolhas deliberadas, como: o desejo reto (o fim que é bom) e o raciocínio correto (as coisas em vista de um fim, ou seja, a prudência). Colocando de outra forma, embora a virtude moral seja distinta da prudência, ambas coexistem -- uma não existe, necessariamente, sem a outra.
Embora Aristóteles afirme que a boa ação é a melhor vida para o ser humano, também afirma que a atividade meramente contemplativa é a que se identifica melhor com a eudaimonia. Antes de abordar esse aspecto conflitante, exploraremos um pouco mais o papel da contemplação. 
Para Aristóteles, a sabedoria filosófica é a mais digna de ser buscada -- ela é o estado saudável da alma teórica (theôria). Desse modo, a virtude da alma contemplativa (sophia) é tida como o que Aristóteles indica ser a felicidade perfeita. Ainda, parece que sabedoria filosófica "produz" sabedoria filosófica, no sentido de proporcionar o seu vir a ser, ou pelo menos fornecer meios para isso acontecer. Portanto, a atividade que mais se identifica com a felicidade é contemplação. Sucintamente, algumas razões podem ser defendias nesse sentido: i) natureza do objeto, pois diz respeito a objetos eternos, duráveis e universais; ii) é a mais contínua - no sentido de que cansa menos e é a mais prazerosa; iii) é a atividade mais auto-suficiente e iv) é aquilo que há de melhor em nós (não no sentido moral).
Podemos agora explorar melhor o problema: A virtude implica sabedoria prática, e esta serve de meio instrumental para a sabedoria filosófica, e, por fim, esta gera felicidade. Tendo em vista esse raciocínio, a consequência é que os valores das ações morais significaria que são dispensáveis quando não produzem sabedoria filosófica. Outra forma de colocar o problema é com a seguinte pergunta: Como, se é possível, conciliar teórica ou conceitualmente as exigências da vida prática e da vida contemplativa? Adianto que defenderei uma tese conciliadora, e portanto será necessário revisar alguns pontos acerca da eudaimonia, vida prática e teórica. Em suma, parece que identificar esse problema não parece condizer com o projeto moral defendido por Aristóteles, no sentido de ignorar a natureza não apenas das virtudes mas também da eudaimonia.
A primeira observação necessária pode ser encontrada em Ackrill, que defende o seguinte: Ações morais visam promover ou tornar possível a contemplação -- as virtudes morais são facilitadoras para a obtenção da sabedoria prática, e, portanto, a contemplação. Disso dito, não se segue que i) não é possível ser feliz na ausência da contemplação e ii) só é possível ser feliz se o indivíduo for um sábio prático. Disso se segue que Aristóteles parece indicar que a felicidade produzida pela sabedoria filosófica difere da felicidade produzida pela sabedoria prática. Além disso, o sábio prático é aquele que delibera bem; portanto, parece pouco plausível que a felicidade fosse impedida para o sábio prático. Dito dessa forma, podemos conciliar com o que Aristóteles comenta sobre graus diferentes de felicidade: 

A segunda vida mais feliz é a que está de acordo com o outro gênero de virtude; pois as atividades deste gênero são humanas. Pois fazemos apenas coisas justas e corajosas e os outros tipos de coisas de acordo com este género de virtude em relação uns aos outros […] e todas parecem humanas.” (Ética a Nicómaco 1178a 9-14)

Conforme discutido por Shields, “a felicidade admite graus, sendo a melhor felicidade a contemplação, mas a segunda melhor felicidade, que é à mesma genuína, é o gênero de felicidade que abrange todas as formas de virtude humana, tanto intelectuais quanto morais.” Ao entendermos essa espécie de graus de felicidade, não estamos apenas mostrando elementos textuais que defendem a tese conciliadora, mas também está em causa, embora discutível,  o seguinte: Trata-se de adotar uma perspectiva de doutrina inclusiva da eudaimonia. É útil entender "fim inclusivo" de acordo como o observado por Ackrill: algum fim que combine ou inclua dois ou mais valores, atividades ou bens; ou, ainda, como um fim no qual, dentre seus diferentes componentes nenhum membro é consideravelmente mais digno de valor do que outro. Embora a tradução de eudaimonia para felicidade seja imprecisa, o que estamos colocando aqui é grosseiramente entendido que a felicidade é um estado inclusivo composto de bens independentes. Assim, é necessário abandonar a ideia restrita que identifica eudaimonia como "felicidade" ou "prazer", e sim a entender como "a melhor vida possível", onde "melhor" não sugere, necessariamente, um sentido moral estrito (Ackrill, JL). Além disso, a alegação de que existe algum fim  desejado em vista dele mesmo não pressupõe, como comenta Ackrill, que existe "um único objeto de desejo", como se o fim fosse algo "monolítico"; aliás, as referências que defendem a arte política como arquitetônica sugerem uma concepção inclusiva da eudaimonia. Destarte, não significa que a eudaimonia seja sinônimo de fim último no sentido de desejar um fim único em detrimento de outros. Resumidamente, a eudaimonia é composta por partes, ela não é dominante.
A defesa da ideia de um fim que inclua todos os demais fins desejados independentemente, ou seja, um fim inclusivo que engloba uma pluralidade de fins separados e subordinados a um fim mais elevado pode ser melhor ilustrada por um exemplo. Não parece ser insensato afirmar que podem existir vários graus de finalidades mesmo nos fins desejados por si mesmos: F1 pode ser algo buscado por si mesmo,  e assim também é F2; e considerando F1 mais final que F2, nada impede que F2 contribua como constituinte de F1. Tomando o exemplo de Ackrill: o prazer pode ser tido como intrinsecamente digno de escolha (um fim em si mesmo), sendo um elemento da Eudaimonia. Esta inclui todas as atividades intrinsecamente dignas de escolhas. É aceitável a tese de que Aristóteles aponta a eudaimonia como sendo uma atividade que visa uma harmonia entre os diversos fins humanos, ou seja, a realização e harmonização de fins primários (aqueles fins em vista dos quais todas as outras coisas são feitas) num todo coerente (Zingano, MA). Em certo sentido, é isso que significa entender o fim supremo como ser inclusivo em detrimento de dominante.
Por outro lado, poder-se-ia objetar que a ideia do bem inclusivo sofreria  problemas em afirmações como "o bem para o homem vem a ser a atividade da alma segundo a virtude, e, se existir mais de uma virtude, segundo a melhor e a mais completa" (sophia, a virtude da razão teórica). Entretanto, pode-se entender "virtude completa" o conjunto de todas as virtudes. Como defendido por Ackrill, a conclusão do argumento da função faz referência à virtude completa, e não a alguma virtude particular.
Uma consequência disso é sobre a relação da sophia com a sabedoria prática. A última não controla a primeira, mas a torna possível. Disso não segue que a única coisa possível da sabedoria prática seja promover a theôria. Em outras palavras, Aristóteles não parece estar assumindo que se determinada ação não promove a theôria, então ela não será digna de ser buscada. Ainda assim, defende que a theôria é a atividade mais digna. O que parece estar em causa é o seguinte: Devemos exercer tanto quanto possível a theôria. Assim, outras atividades podem ser exercidas quando a contemplação não pode ser exercida, pois essas outras também são dignas de serem buscadas. A felicidade, portanto, não é negada na ausência da atividade contemplativa, mas ela é, sem dúvida, uma felicidade maior quando na presença dessa atividade. De qualquer forma, parece que dever haver um compromisso entre ações virtuosas com a theôria. Além disso, a vida apenas de theôria não parece ser uma vida feliz. Enfim, o valor da contemplação não significa que esta seja o provedor de um critério único e último para a correção das ações.
Tomando tudo o que já foi dito, a tese conciliadora pode ser resumida: a sabedoria prática proporciona tempo livre para exercer a sabedoria filosófica. Mesmo que a contemplação seja a atividade mais auto-suficiente, isso não parece implicar que o filósofo é mais auto-suficiente que o virtuoso moral. Uma razão disso é que se identificarmos as condições externas para tornar possível exercer uma atividade, o filósofo é o que requer condições mínimas para isso. Em outras palavras, o filósofo precisa de menos instrumentos e pessoas que o agente moral. Do ponto de vista da eudaimonia, concluímos o seguinte: Já que não deliberamos sobre sobre os fins, mas sobre os meios, e a felicidade é a única coisa sobre a qual não deliberamos, segue-se disso que um determinado fim poderá independer de minhas ações.
Tendo em vista o exposto, é possível resumir os questinamentos no início do texto da seguinte forma: Supondo que o agente moral obteve uma deliberação correta -- ou seja, a melhor possível enquanto ser humano --, mas não atingiu o fim desejado (agente moral i), ele não será menos virtuoso caso tivesse atingindo esse mesmo fim (agente moral ii). Dito dessa forma, no contexto do projeto ético aristotélico, será mais feliz o agente moral ii.
Vale salientar, por fim, que atos virtuosos não são escolhidos porque se é filósofo, mas porque se é humano. Dessa forma, a felicidade não é negada para aquele que não contempla, muito embora, conforme já dito, a ausência da contemplação implique o que Aristóteles sugere de felicidade segunda.
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1.
A noção de alma aristotélica não é a ideia geral que se assemelha a algo como um espírito. A metafísica aristotélica fazia uma distinção entre potência e ato. E ainda, de ato primário (e potência primária) e ato secundário (e potência secundária). Exemplo: Embora eu não fale, eu tenho a possibilidade de adquirir conhecimentos da língua francesa, ou seja é uma potência primária; quando eu começo a estudar estou desenvolvendo a potência segunda; e quando estiver falando mais ou menos fluente isso se caracteriza um ato (colocar em atividade aquilo que é possível). Nesse sentido, a alma é uma potência primária: torna algo (ser vivo) que terá capacidade de realizar atos secundário (operações vitais), e que não necessariamente devem acontecer. Portanto, não é algo tangível. O conhecimento em francês também não é um objeto tangível, mas não é, por isso, algo fantasmagórico. Aristóteles reconhece que todos os seres vivos têm alma, mas supõe haver uma hierarquia entre os seres vivos, começando com as plantas, que têm apenas nutrição, passando pelos animais não-humanos, que acrescentam a percepção à nutrição, e acabando nos seres humanos, que são também racionais.

2.
Grosso modo, a alma dos seres humanos é dividida em irracional e racional. A primeira ainda é composta de uma parte vegetativa (nutrição, crescimento e reprodução) e outra desiderativa (desejos, apetites e impulsos) e a segunda composta de uma parte prática e outra teórica. As virtudes do caráter (morais) derivam da alma desiderativa e virtudes do intelecto derivam da alma racional. Há uma comunicação entre a alma desiderativa e a racional, à medida em que a parte desiderativa "dá ouvido" à razão e nela "respinga" -- mas só na parte prática que compõe a alma racional.

3.
Interessante notar que a tese normativa moral aristotélica, bem como outras, sugerem recomendações distintas dos comportamentos que de fato acontecem. No caso em questão, tem sido evidenciado que as pessoas, ao fazerem escolhas, julgam o resultado das ações não pelo seu valor absoluto mas se o resultado envolve ganhos ou perdas comparado a um ponto de referência, e que essas pessoas pesam mais as possíveis perdas do que os eventuais ganhos (para mais informações ver os artigos "Prospect Theory" e "Rational Choice and the Framing of Decisions", de Daniel Kahneman e Amos Tversky).
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Referências

Aristóteles, Ética a Nicômaco
Lawrence, G. O bem humano e a função humana.
Shields, C. Aristotle
Ackrill, J.L. Sobre a Eudaimonia
Zingano, M.A. Eudaimonia e o bem supremo em Aristóteles