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domingo, 3 de janeiro de 2021

Melhores leituras de 2020

 O ano foi de isolamento. Isso ajudou tirar da prateleira livros ainda não lidos, bem como se manter informado em leituras novas sobre assuntos bastante atuais.

Selecionei aqui 05 livros que mais gostei de ler em 2020. Dou uma rápida explicação sobre eles. Todos são facilmente encontrados em versões físicas e/ou digitais (no meu caso através do Kindle). Não está em ordem de preferência. Acontece que os temas são tão diversos que cada um deles eu gostei por razões diferentes.
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                                                              # Agricultura: Fatos e Mitos #
 
Três autores (dois deles grandes nomes na área: Xico Graziano e Décio Luiz Gazzoni) trazem uma série de fatos e mitos sobre a agricultura brasileira. É um livro incrível porque consegue com sucesso satisfazer uma demanda reprimida de divulgação científica séria sobre esse assunto. Na verdade os assuntos, pois são vários: 
desmatamento, pesticidas, orgânicos, transgênicos, etc. 
 
* Lembra aquela crença que alimento orgânico é sempre e inequivocadamente melhor que o alimento convencional ? É mito.
* Lembra aquela crença que o plantio transgênico aumentou a produtividade de várias plantações e não tem risco à saúde humana? É verdade.
* Lembra aquela crença que em 2019 houve aumento de desmatamento na Amazônia Legal? É verdade, porém o maior pico de desmatamento registrado em uma série histórica ocorreu em 2004.
 
E por aí vai. Cada uma dessas está recheado de evidências e citações na literatura.
 
 
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# Irreversible Damage #
(ainda sem tradução)
 
Talvez uma das coisas exageradas do livro é o título, pois pode impedir o primeiro acesso ao livro justamente de pessoas que mais precisam dele. De todo modo, o conteúdo é ótimo porque abre uma discussão importante. A escritora fez um trabalho de investigação, mantendo a compaixão que o assunto merece. O livro foca em crianças (não em adultos), sobretudo em meninas pré-púberes. O assunto pode ser explosivo para a cabeça de algumas pessoas, mas merece atenção e discussão. Por essa razão vou me prolonga rum pouco mais nesse livro.
Segundo a tese dela, uma espécie de epidemia silenciosa está se espalhando entre as adolescentes. Após um extenso levantamento de dados, nos é apresentado a uma suposta epidemia em garotas que, subitamente, sem qualquer sinal prévio, passam a se identificar como transgênero. Embora certamente haja casos reais de crianças transgêneros em tenra idade, o que tem sido observado é que as adolescentes estão sendo induzidas a aceitar a “transição de gênero” a partir de uma premissa bastante difundida em países ricos (EUA, Canadá, Inglaterra e Suécia) baseada no "consentimento informado", a qual se baseia única e exclusivamente na afirmação das garotas. Consultas psicológicas para avaliar outras possíveis causas de seus transtornos (como depressão, ansiedade ou déficit de atenção) são desencorajadas com ameaças, inclusive médicos tendo clínicas fechadas. Nos círculos mais progressistas uma pequena centelha de dúvida na palavra da criança pode virar acusação de transfobia, inclusive com perda de emprego.
Classicamente, a incidência esperada de disforia de gênero é algo entre 0,005 a 0,014% entre meninos. Em meninas é ainda menor: Entre 0,002 a 0,003%. Trocando em miúdos: Se esses dados são precisos, isso significa uma incidência da disforia clássica de menos de 1 em 10.000 pessoas. No entanto, na última década, conforme o livro discute, a disforia de gênero na adolescência parece ter aumentado expressivamente. Só nos EUA a prevalência aumentou em mais de 1.000 por cento. Ou seja: em vez de um caso a cada mil pessoas, como era de se esperar, estimativas sugerem um aumento de um a cada cinquenta. No outro lado do mundo, na Suécia, entre os anos de 2008 e 2018 houve um aumento de 1.500% em diagnósticos de disforia de gênero entre meninas de 13-17 anos de idade. Coisa similar foi constatado na Inglaterra.
Isso tudo saltou os olhos de muitas autoridades, inclusive pais, e a razão disso é a escalada que ocorre após a menina se reconhecer como menino: primeiro, a troca de pronome; depois, o uso de bloqueadores de hormônios; na sequência, uso de testosterona; e, por fim, cirurgia de remoção de mamas e/ou faloplastia. Isso tudo tem acontecido (pelo menos até a ingestão de testosterona) em meninas com idade a partir de 12 ou 13 anos. Algo que me chamou a atenção: O perfil da grande maioria desses casos são de meninas de classe média/alta, brancas, de família com valores progressistas e com elevado acesso diário a redes sociais.
É bem sabido que a disforia de gênero (pelo menos a clássica disforia) acomete principalmente os meninos e mesmo assim não em taxas elevadas como as que se tem visto hoje. Em um artigo científico recente publicada na renovada revista PLOS ONE, uma pesquisadora chamou esse novo fenômeno de "disforia de gênero de início rápido" (rapid onset of gender dysphoria). A questão é: essa nova disforia é uma coisa real? Talvez, ninguém tem a resposta final ainda. Tem muita coisa explanatória.
 
Algumas leituras extras:
Reportagem sobre os caso na Suécia: https://www.theguardian.com/.../ssweden-teenage...
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# The end of Gender #
(ainda sem tradução)
 
Na esteira do livro anterior, este da neuroscientista e sexóloga Debra Soh é, de certa forma, mais abrangente. O tema não é menos espinhoso também. Mas é mais espinhoso para quem está contaminado com a cabeça no ativismo identitário, vive no twitter, tumblr e só lê Judith Butler e/ou Foucault. No mundo real, eis alguns fatos discutidos no livro:
- Só existem dois sexos na natureza humana;
- Em mais de 99% das pessoas o gênero sexual é idêntico ao seu sexo;
- Sexo biológico não é um espectro (quem acredita nisso confunde característica sexual primária com característica sexual secundária);
- Sexo biológico não é definido através dos cromossomos (XX ou XY);
- Sexo biológico é definido pelos gametas. Na espécie humana só tem dois tipos: esperma e óvulo. Não existe intermediário.
- Reconhecer o fato acima não impede reconhecer a dignidade de pessoas transexuais, pois, sim, existem pessoas que caem nessa classificação, e isso não está em contradição com as afirmações anteriores;
- Pessoas intersexo existem, são em número bastante minoritário, e ainda assim a existência dessas pessoas não entra em conflito com as afirmações acima;
- Pessoas com o gênero identificado como demigênero-fluido, bigênero neutrois, demigirl, aliagender, pangender, demiboy e mais uns outros 70 possíveis (cada mês a lista aumenta) é um fenômeno curioso, mas é, provavelmente, coisa de ativista com pouca curiosidade sobre o mundo.
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# Janelas para a Filosofia #
 
Livros de divulgação científica modernos, em português, e de qualidade, ainda é coisa escasso no Brasil. Este aqui, feito em colaboração com um professor da Universidade de Ouro Preto (aliás, o professor
Desidério Murcho
é uma figura que merece ser seguida nas redes) tenta suprimir essa escassez. A obra é acessível para quem nunca leu algo sobre filosofia, e ainda deixa um gosto de querer mais. Os ensaios discutem temas como valores éticos (subjetivos e objetivos), valores políticos, fundamentos da fé, fundamentos do conhecimento e fundamentos estéticos. Enfim, vários temas de filosofia são explorados aqui. E ainda consegue oferecer um texto que não busca fazer proselitismo em nenhum dos assuntos. Na medida do possível, apresenta sempre uma ou duas versões de pontos e contrapontos de uma posição.
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# Os cinco convites #
 
Descobri esse livro acidentalmente, durante um episódio do podcast do Sam Harris entrevistando o Frank Ostaseski. Frank foi fundador do Zen Hospice Project em San Francisco. Nesse lugar dedicou boa parte da vida explorando o cuidado compassivo em pacientes em estado terminal. Não foram poucas as vezes que eu deixar me levar na emoção dos casos contado pelo Frank. O fim da vida, da nossa ou de entes queridos, nos convida a receber a refletir sobre situações que poucas vezes nos deparamos. Seu livro nos oferece cinco convites para participar desse processo inevitável: Não espere; aceite tudo, não rejeite nada; traga tudo de si para a experiência; encontre um lugar de descanso no meio de tudo e cultive o não saber. Além de nos brindar com conselhos teóricos que valem a pena ser seguidos, nos incentiva a prática da meditação mindfulness. A leitura foi muito agradável.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

O medo do Glifosato é um alarme falso



                                                                         [Publicado originalmente no Diário Popular]








Molécula Glifosato


Em um recente artigo de opinião, o ecólogo Marcelo Dutra da Silva escreveu sobre a possibilidade do consumo de glifosato estar associado ao câncer. O glifosato é um herbicida de amplo espectro usado para matar ervas daninhas na agricultura e que se tornou difundido através da comercialização pela Monsanto para a agricultura transgênica. O autor alegou que o uso do herbicida resultou em (i) aumento da incidência de certos tipos de câncer e uma possível relação com a incidência de autismo, e trouxe à tona um recente estudo argentino ("Association between cancer and environmental exposure to glyphosate") que associa a exposição ambiental do glifosato com casos de câncer; portanto (ii) reforçaria a tese que "comprova a estreita relação entre o glifosato e o câncer." Minha breve pretensão é apresentar um contraponto para as alegações (i) e (ii).
Quando se fala sobre toxicidade, a primeira tarefa é examinar um parâmetro conhecido como dose letal mediana (DL50), que é a dose necessária de uma dada substância ou radiação para matar 50% de uma população em teste. É normalmente apresentado com as unidades de mg/kg e considera-se nocivo um DL na faixa de 200 a 2000 e muito tóxico um DL menor que 25 (a ideia é fácil: quanto menor mais tóxico e quanto maior menos tóxico). O DL50 do glifosato é estimado em 5600 mg/kg. Para efeitos comparativos, é facilmente encontrado que o DL50 para o sal de cozinha, a cafeína e nicotina são de 3000, 192 e 50 mg/kg, respectivamente. Isso significa que o glifosato é menos tóxico que o sal de cozinha e, desse modo, é difícil comprar a tese que este herbicida seja a causa de todos os males. Além disso, o uso do glifosato conseguiu reduzir o uso de outros herbicidas que demonstravelmente possuem efeitos nocivos (como a atrazina e o 2,4,5-T).
Um recente relatório assinado pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (com o título de "Review of the Evidence Relating to Glyphosate and Carcinogenicity") levou em consideração vários estudos revisados por reconhecidas agências internacionais (como a Agência Internacional para a Pesquisa sobre Câncer e a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos), chegando a seguinte conclusão:  "A maioria dos estudos em humanos não mostrou associação entre exposição ao glifosato e câncer. Embora um pequeno número de estudos com um número limitado de participantes encontrou uma associação fraca entre a exposição ao glifosato e o risco aumentado de linfoma não-Hodgkin, vários outros estudos não encontraram esta associação."
No ano passado, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos emitiu o que é considerado um dos mais abrangentes exames dos estudos pertinentes sobre o glifosato já realizados ("Glyphosate Issue Paper: Evaluation of Carcinogenic Potential), no qual também concluiu que "não existe nenhuma forte evidência para a sugestão do potencial carcinogênico do glifosato, e que pequenas alterações não estatisticamente significativas observadas na carcinogenicidade animal e estudos epidemiológicos foram contraditadas por estudos de qualidade igual ou superior”.
Sobre o artigo citado pelo ecólogo, a próprio resumo dos autores originais é mais contido que a alegação alarmante comumente propagandeada: "Este estudo detectou alta poluição de glifosato em associação com o aumento das frequências de câncer em uma típica aldeia agrícola argentina, entretanto não pode fazer alegações de causalidade. Outros desenhos de estudo são necessários, mas se corroborar a concrescência de alta exposição ao glifosato e câncer." Uma lição importante de qualquer investigação empírica, sobretudo quando interpretamos estudos isolados, é que correlação não é sinônimo de causa e consequência, portanto é prudente evitar pânico moral nesses casos.
Com relação a incidência de autismo, é necessário lembrar que essa história foi espalhada depois de um artigo de um autor francês ter sido publicado em 2012 na revista Food and Chemical Toxicology. Após alguns meses de escrutínio na comunidade científica o artigo foi retratado sob suspeita que o trabalho não tivesse qualidade suficiente para fazer parte da literatura científica.
Atualmente, o esmagador consenso científico é que o glifosato é uma opção muito segura para o controle de ervas daninhas, com muitos benefícios e poucos riscos. O problema do alarmismo fácil é que incide muito tempo sobre coisas seguramente não merecedoras de tamanha atenção, ao passo que outras de ricos reais, como o risco do cigarro, começam a perder credibilidade quando alertas são emitidos.

domingo, 6 de novembro de 2016

A orientação sexual parental importa? Um acompanhamento longitudinal de famílias adotivas com crianças em idade escolar


Originalmente traduzido para o blog Bule Voador

 Por quase uma década, a professora de psicologia Rachel H. Farr (Universidade de Kentucky)  tem estudado diferentes aspectos da vida familiar entre heterossexuais, pais gays e lésbicas e seus filhos adotivos. Suas mais recentes descobertas foram publicadas pela revista Developmental Psychology.
Os resultados mais recentes da investigação de Farr fornecem mais apoio que as crianças adotadas por pais gays e lésbicas são bem ajustadas, não só no início da infância, mas ao longo de todo o tempo de desenvolvimento infantil. Seu estudo incidiu sobre um estudo longitudinal (*) de cerca de 100 famílias adotivas com crianças em idade escolar visando acompanhá-las como elas amadureceram desde o início até o meio da infância (**). Como resultado, os pais foram capazes de desempenhar seus papéis parentais e satisfeitos em suas relações de casal ao longo do tempo, sem diferenças por tipo de família.
Segundo a autora, “este é o primeiro estudo que acompanhou crianças adotadas por gays, lésbicas e pais heterossexuais ao longo do tempo a partir do início até o meio da infância (ver nota do tradutor). A pesquisa longitudinal (como esta) oferece insights sobre quais os fatores podem ser os melhores ou mais fortes preditores de desenvolvimento das crianças, para além de informações que podem ser reunidos em apenas um ponto do tempo.” E ainda segue: “Independentemente da orientação sexual dos pais, as crianças (no estudo) tiveram menos problemas de comportamento ao longo do tempo quando seus pais adotivos experimentaram menos stress de parentalidade. Um melhoramento do funcionamento da família quando as crianças estavam em idade escolar foi previsto quanto menor o estresse dos pais e menos problemas de comportamento  quando crianças estavam em idade pré-escolar. Assim, nessas famílias adotivas tão diversas quanto a orientação sexual dos pais, os processos familiares surgem como mais importante do que a estrutura familiar para os resultados da criança e o funcionamento da família.”
A pesquisa da Rachel H. Farr notou que “não há diferenças entre os tipos (heterossexual ou homossexual) de família” em uma  miríade de características como problemas de comportamento, níveis de estresse, relações de casal, funcionalidade familiar, ajustes de relacionamento ao longo do tempo e outros fatores. O autor ressalta também que estes achados, que suportam muitos outros resultados positivos entre famílias adotivas  por mães lésbicas, homossexuais ou heterossexuais, podem ser informativos para o sistema legal e com implicâncias políticas. Isso torna-se relevante no contexto em que, segundo algumas estimativas, pelo menos 65.500 crianças adotadas (equivalente a mais de 4% de todas as crianças adotadas nos Estados Unidos) têm pais compostos por minorias sexuais.

Referências
Livre tradução do ScienceDaily
Artigo Original: Farr, RachelH. Does Parental Sexual Orientation Matter? A Longitudinal Follow-Up of Adoptive Families With School-Age Children. Developmental Psychology, Oct 20 ,2016.
Nota do tradutor: Na literatura científica há várias outros estudos que convergem para resultados semelhantes. Lavner e colaboradores mostraram que filhos de casais gays e lésbicas não mostraram diferenças apreciáveis em testes cognitivos durante um acompanhamento de dois anos. Em outro estudo, foi mostrado que em comparação a uma amostra de pais heterosexuais, os pais gays reportaram comportamento parental similar bem como não houve diferenças no bem estar dos filhos desses casais em comparação aos pais héteros. Há, entretanto, opiniões que fornecem um contraponto com relação a metodologia de alguns dos estudos feitos na área — alegando, portanto –, que em alguns casos mais estudos ainda precisam ser conduzidos.
(*)Estudo longitudinal é um método de pesquisa que visa analisar as variações nas características dos mesmos elementos amostrais (indivíduos, empresas, organizações, etc.) ao longo de um longo período de tempo – frequentemente vários anos (Fonte: Wikipédia).
(**) O estudo foi composto por um acompanhamento de duas “ondas” (wave); uma quando as crianças estavam idade pré-escolar, e outra aproximadamente 5 anos mais tarde, quando as crianças estavam no meio da infância.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Mulheres na ciência

                                                                                      Originalmente publicado no blog Bule Voador

É lastimável a opinião que considera opções profissionais como sendo uma caixinha "para homens" e outras "para mulheres". E toda iniciativa que tenha algum efeito real de minimizar isso é bem-vinda. É nesse contexto que tem sido comum a consciência que há proporcionalmente menos mulheres do que homens na ciência brasileira. Isso parece ser verdade. Só que também parece ser verdade que nunca esteve tão fácil o acesso das mulheres aos cursos de exatas.
A tese levantada por muitos nem sempre reconhece isso, e vai além: Uma das causas, talvez a principal, é devido a alguma coisa que é alimentada pela cultura. Em alguma extensão tem sido popular a ideia que o sexismo é um dos fatores predominantes que acabam desestimulando mulheres a buscarem carreiras científicas. Embora eu conceda que isso possa ser um dos fatores, eu disputo a ideia que seja o principal.
Há hipóteses competitivas que podem dar conta de responder a discrepância. Uma maneira de responder isso com mais objetividade seria fazer um levantamento de quantas pessoas autodeclaradas mulheres entram em cursos de exatas e após os semestres iniciais desistem ou trocam de curso. Suponho que a troca voluntária de curso e/ou desistência seja mais expressiva entre as mulheres em comparação ao público masculino. Naturalmente isso afetaria a proporção numérica futura entre os sexos na formação acadêmica nas áreas de pesquisa. Possivelmente isso seja consequência mais de preferências biológicas e psicológicas distintas entre os sexos do que coisas como patriarcado e opressão. Por exemplo -- na média da população--, as mulheres tendem a ser mais adversa ao risco, preferem profissões menos competitivas e são emocionalmente mais expressivas.
Há evidências que apontam nesse sentido. Diferenças de personalidade entre homens e mulheres são maiores e mais robustas nas sociedades industriais mais prósperas e avançados como EUA, Canadá e França. Os países com alta expectativa de vida, altos níveis de alfabetização, educação e renda são susceptíveis de ter as maiores diferenças entre os sexos na personalidade. Provavelmente porque a prosperidade e igualdade trazem maiores oportunidades de autorrealização; assim, homens e mulheres têm o poder de ser quem mais realmente são (*). Não parece por acaso, portanto, que alguns dados apontam que há mais mulheres engenheiras na Rússia e na China do que nos países com maior igualdade de gênero. As mulheres americanas e europeias estão entre as pessoas mais educadas, bem informadas, e autodenominadas em toda a história da humanidade. E é plausível a defesa que na Rússia e China há mais mulheres em áreas das exatas muito mais por imposição do que por escolha livre (aí sim a tese do fator cultural parece ser preponderante).
A Noruega, um dos países de maior IDH, continua mostrando tendência para mulheres seguirem carreiras que envolvam mais contato com pessoas (por exemplo, enfermeiras) e os homens carreiras mais solitárias (por exemplo, cientistas) -- e isso vai ao encontro de que estas pessoas encontram um terreno que facilita a manifestação de seus verdadeiros interesses.
Outra linha de evidência (**) sugere que mulheres ao redor do mundo, mesmo em países onde os diferenciais sociopolíticos são grandes e há menor igualdade para a mulher, estão ganhando de homens em ciência e literatura. Em média, alguns dados mostram que os rapazes têm resultados educacionais piores do que meninas ao redor do mundo, independente dos indicadores socais de igualdade.
Portanto não é óbvio que toda diferença por gostos e atividades é derivada da cultura. Embora a cultura possa endossar papéis de gêneros parece que a biologia e a psicologia também desempenham algum papel relevante nisso.
Acredito que uma boa sociedade é aquela definida com elevado nível de satisfação, e não tanto com preocupação insistente em paridade estatística. Se os estudos preliminares estão certos, a igualdade de oportunidades é mais relevante do que igualdade de resultados entre homens e mulheres. É uma questão de respeitar e acomodar as diferenças individuais.
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Fontes
(*) http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/18712468
(**) https://www.sciencedaily.com/releases/2015/01/150126125015.htm

domingo, 12 de junho de 2016

Entre o Céu e a Terra: Novas Descobertas sobre a Origem da Vida

Publicado Originalmente no blog Bule Voador

No último mês de Maio, duas publicações na revista Science lançam luz sobre algumas das perguntas ainda em aberto sobre a origem da vida no planeta Terra. O curioso, embora não incomum na ciência, é que ambas podem ser entendidas como complementares uma da outra. Um artigo é sobre a detecção de biomoléculas relevantes na nuvem de poeira e gás que circunda o núcleo de um cometa (coma cometária) e o outro explora um mecanismo viável de produção de bases nitrogenadas (componentes do ADN e ARN) em condições plausíveis na Terra primitiva.

No Céu
Cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko, Agosto de 2015
(Cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko, Agosto de 2015)

A possibilidade de que moléculas de água e moléculas orgânicas foram trazidos para a Terra primitiva por meio de impactos de objetos como asteroides e cometas têm sido objeto de debate nos últimos anos. É nesse contexto que o instrumento espectrômetro de massas ROSINA da sonda Rosetta foi projetado para estudar o coma cometária do cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko. Para quem está esquecido, a sonda Rosetta é a “nave mãe” da sonda Philae, o primeiro instrumento a fazer um pouso controlado em um cometa em órbita.
Em outros estudos, o instrumento O ROSINA da sonda Rosetta já havia mostrado uma diferença significativa na composição de água do 67P/Churyumov-Gerasimenko em comparação com a Terra. Dessa vez, a descoberta é o potencial destes objetos cósmicos de entregar outros ingredientes da vida na superfície da Terra.
Mais de 140 moléculas diferentes já formam identificadas no meio interestelar. A despeito disso, os aminoácidos ainda não haviam sido rastreados. No entanto, pistas do aminoácido Glicina, um composto orgânico biologicamente importante e comumente encontrados em proteínas, foram encontrados durante a missão Stardust da NASA que voou pelo cometa Wild 2 em 2004. Contudo, a contaminação terrestre das amostras de poeira coletadas durante a análise não havia sido descartada. Agora, pela primeira vez, detecções repetidas deste aminoácido foram confirmadas pela sonda Rosetta após analisar o a atmosfera do cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko. Importante destacar que a detecção de aminoácidos em materiais meteoritos caídos na Terra já é bem estabelecida, sendo mais de 80 deles já reportados em condritos carbonáceos.
 A glicina é muito difícil de detectar devido à sua natureza não-reativa: sublima-se a uma temperatura em torno de 150°C, o que significa que pouco é liberado como gás a partir da superfície ou subsuperfície do cometa devido às suas temperaturas frias. Um dos resultados encontrados no estudo foi uma forte correlação entre a presença de glicina e poeira, o que segundo os autores sugere uma liberação da molécula a partir mantos de gelo dos grãos depois de terem aquecido. Ao mesmo tempo, os investigadores também detectaram moléculas de metilamina e etilamina, que são precursores da formação de glicina. Ao contrário de outros aminoácidos, a glicina é a única que foi mostrada ser capaz de formar, sem água no estado líquido. Segundo a autora Kathrin Altweeg “A presença simultânea de metilamina e etilamina, e a correlação entre a poeira e glicina, também indica a forma como a glicina foi formada”.
Outra detecção interessante feita pela ROSINA foi, pela primeira vez em um cometa, a presença de fósforo. Como pode ser visto na Figura 1, é um elemento-chave em todos os organismos vivos e é encontrada no quadro estrutural do ADN e ARN. No total, foram identificados 16 compostos orgânicos, incluindo outras de destaque para o contexto da química prébiótica como o sulfeto de hidrogênio (H2S) e o cianeto de hidrogênio (HCN).
DNA
Figura 1: Esquema da molécula de ARN contendo a base nitrogenada guanina. Um filamento de ARN é formado de um arcabouço de açúcar (ribose) e fosfato com uma base ligada covalentemente na posição 1′ de cada ribose. As ligações açúcar-fosfato são feitas nas posições 5′ e 3′ do açúcar, como no DNA. Dessa forma, uma cadeia de RNA terá uma ponta 5′ e uma ponta 3′. Os nucleotídeos de RNA (chamados ribonucleotídeos) contêm as bases adenina, guanina, citosina e uracila (U). No caso do ADN, a Timina está presente no lugar da uracila.

Na Terra
Da TerraAntes de sistemas auto-replicantes terem aparecidos, a química prebiótica (reações químicas que antecedem a origem da vida) deve primeiro ter dado origem às subunidades que formam a base para os biopolímeros complexos encontrados em todos os organismos modernos – as proteínas e os ácidos nucleicos que especificam suas estruturas. Dentre as hipóteses, uma das mais aceitas atualmente é o “mundo ANR”. Em síntese, propõe que o ARN foi a primeira forma de vida na Terra, com posterior desenvolvimento de uma membrana celular em seu redor e convertendo-se assim na primeira célula procariota.
Entre as evidências que apoiam a hipótese do “mundo ARN” está inclusa a potencialmente da molécula catalisar a sua própria síntese e assim facilitando várias outras reações bioquímicas, além de também possui a capacidade de armazenar informação genética. Uma análise preliminar das possíveis vias de síntese levou a equipe da Ludwig-Maximilians-Universitaet (LMU, Munique) e colaboradores de seu grupo a um esquema de reação – o chamado caminho FaPy ¬ – que poderia ter sido ativado para formar purinas sob condições prebióticas. Duas (Adenina e Guanina) das cinco bases de nucleotídeos que codificam a informação genética armazenada no ARN e ADN são purinas (as demais são as pirimidinas). Elas também fazem parte das moléculas de ATP e GTP, ambas servindo como fonte de energia para as reações bioquímicas e como interruptores moleculares no controle de função de proteínas.
O caminho FaPy começa com a ligação da formamida (amida derivada do ácido fórmico) a aminopirimidinas, anéis que podem ser produzidos por uma série de reações entre moléculas de cianeto de hidrogênio. Isto dá origem a moléculas de formamido-pirimidinas (no inglês, formamidopyridines; daí o uso da sigla FaPy). Uma sequência de passos de reações subsequente converte a formamido-pirimidinas em purinas (adenina e guanina), e vários outros derivados biologicamente importantes. Os autores demonstram que é possível obter cerca de 70% dos produtos da via da FaPy como purinas, sendo a adenosina (formada pela união da adenina e ribose) – uma sub-unidade de ARN importante – representando cerca de 20%. Com o mecanismo FaPy, foi descoberta uma via sintética que fornece os componentes centrais da bioquímica de vida com elevado rendimento e com alta especificidade.

Entre o Céu e a Terra

As moléculas necessárias para o caminho da síntese FaPy estão disponíveis a partir do ácido fórmico e da aminipirimidina, que por sua vez podem ser formadas por compostos detectados através das análises da sonda Roseta. Tomado em conjunto, os dois artigos suportam a ideia de que cometas entregaram moléculas-chave para que a química na Terra primitiva pudesse eventualmente formar a vida como conhecemos. Em especial a detecção de aminoácidos, também suporta outras linhas de pesquisas nas quais têm sido propostas para a formação de peptídeos (formados pela união de dois ou mais aminoácidos) em condições da Terra primitiva, e que inclusive há brasileiros participando.
É verdade que ainda existem lacunas e dúvidas sobre a origem da vida. Mas com cada vez mais os cientistas têm trazidos novidades relevantes e animadoras para melhor entendemos uma parte da velha questão que tanto fascina a humanidade: De onde viemos?
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Artigos científicos:

domingo, 27 de março de 2016

Deus, uma hipótese improvável

Publicado originalmente no blog Bule Voador

Estima-se algo em torno de 8,7 milhões de espécies habitando atualmente o planeta. Também tem sido descobertas cerca de 15.000 novas espécies novas a cada ano. Isso sem falar no total de espécies já existentes em toda a história dos 4,5 bilhões de anos do planeta, que deve beirar na faixa dos 5 bilhões. Lá fora, no cosmos, os números são ainda mais impressionantes: Só na nossa galáxia, a via láctea, estima-se existir 100 bilhões de planetas. Estimativas tímidas sugerem algo em torno de 200 bilhões de galáxias no universo, que podem conter alguns 17 bilhões de planetas semelhantes à Terra (sem mencionar os outros bilhões de planetas não rochosos, do tipo Júpiter, que abundam o Universo). Até onde sabemos, há apenas uma única espécie que desenvolveu habilidade cognitiva de perscrutar criticamente o ambiente em que vive. Em nosso planeta nós somos a única espécie capaz disso.

No meio dessa monstruosidade de números, alguns — com arrogância ou medo da solidão cósmica –, alegam que há alguma entidade responsável pela criação dos mundos e das espécies. Mais estranho ainda, que esta entidade de alguma forma se preocupa com os interesses humanos. O que não deixa de ser curioso é justamente a correlação existente entre a espécie que desenvolveu raciocínio e um dos seus sub-produtos culturais mais populares: A existência de Deuses. Uma das dificuldades em sustentar essa crença é a tentativa de inserir qualidades aos Deuses que são comportamentos e vontades flagrantemente humanas. Quando alguém atribui consciência, preocupação moral, inteligência, criatividade e poder de criação (especialmente criação de seres à “imagem e semelhança” de Deus) está antropomorfizando e antropocentrizando a suposta entidade. Não há nenhuma novidade nisso, já que reflete coisas como o que Xenófanes já percebeu há mais de 2.000 anos: “Se os bois e os cavalos tivessem mãos e pudessem pintar e produzir obras de arte similares às do homem, os cavalos pintariam os deuses sob forma de cavalos e os bois pitariam os deuses sob forma de bois.”

Este é um dos problemas: Dedicar importância excessiva a atributos relacionados a uma espécie que representa uma fração muitíssimo pequena de todo o universo não é a melhor estratégia para mostrar plausibilidade de uma entidade teísta. Como já dito, somos apenas uma espécie das 5 bilhões que já existiram em um planeta num universo que pode existir outros 17 bilhões de planetas parecidos. Disso se segue que as suposições antropomórficas e antropocêntricas são, com elevada probabilidade, possivelmente falsas. Em miúdos: Só há um tipo de inteligência que tivemos acesso até hoje, a inteligência humana. Logo, há uma grande chance de que a criação de deuses seja um produto dessa inteligência.

No que diz respeito a influência de Deus no mundo, encontra-se no imaginário popular a ideia de que “ele sabe o que faz”. Para ilustrar o quanto o senso comum muitas vezes só reproduz crenças preguiçosas, tomemos o exemplo de um recente desastre natural. No estado de São Paulo, o recente deslizamento já ceifou a vida de 16 pessoas, além de causar sofrimento humano e material em habitantes de várias cidades. A pergunta é: Sabe Deus o que faz? Há algumas maneiras de tentar explorar com mais claridade essa pergunta, como: Ele sabe por que foi ele quem o fez? Ou apenas sabe e não faz nada para impedir? Ou tenta fazer algo e não consegue? Ora, se ele causou o desastre, então não é benevolente. No entanto, se ele não causou, mas apenas tem conhecimento do ocorrido, então não fez nada para impedir. Logo, não é onipotente. Se ele tentou evitar mas não conseguiu também não é onipotente. Ou ele não sabe? Então não é onisciente. Então por qual razão chamá-lo de Deus?

É possível articular algumas respostas para as questões anteriores, muito embora nem sempre o teísta que apenas repete ideias do senso comum as apresente. Uma delas é a que se segue. Deus possui todos os atributos (como benevolência, onipotência, onisciência, onipresença), mas abre mão conscientemente e temporariamente de alguns deles para que, sob a ação do mal, os humanos possam mostrar o melhor de si. Entretanto, isso ainda traria outros problemas, já que não é óbvio que a existência do mal incremente a existência do bem e não responde sobre a incompatibilidade dos atributos.

Para muitos, a ideia de um Deus é uma crença psicologicamente agradável. Apesar de toda a insistência e ligação emocional com a hipótese da existência de Deuses, a possibilidade dessa(s) entidade (s) não parece plausível. E uma vez concluindo isso, e se é com a verdade que estamos comprometidos, não é pelo fato de uma crença ser emocionalmente confortante que ela deve ser mantida.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Chamada do CNPq está apoiando pesquisa em homeopatia

   Ao abrir a página do CNPq desta semana, é possível encontrar um anúncio desconfortável. Uma chamada em parceria com a ANVISA visando apoiar financeiramente projetos que incluem estudos envolvendo homeopatia. E isso não é a primeira vez que acontece.
   O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, é uma agência do Ministério da Ciência, e desde a década de 50 tem como principais atribuições fomentar a pesquisa científica e tecnológica e incentivar a formação de pesquisadores brasileiros. Na página da agência é possível encontrar o que norteia a instituição: “Fomentar a Ciência, Tecnologia e Inovação e atuar na formulação de suas políticas, contribuindo para o avanço das fronteiras do conhecimento, o desenvolvimento sustentável e a soberania nacional.” A missão da agência é cristalina. Contudo, algumas vezes seu financiamento científico é obscurantista.
   O CNPq é um órgão ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Trocando em miúdos, o investimento em ciência e tecnologia da instituição é adquirido através de dinheiro público. Sendo assim, há pelo menos duas responsabilidades que a instituição deve prezar — uma científica e outra moral.
   Na literatura científica é possível encontrar pelo menos 5 meta-análises (estudos sobre estudos científicos) indicando unanimemente que a homeopatia não difere do placebo. Se a homeopatia quer ser aceita como medicina ela tem que se mostrar eficaz, e ser submetida ao escrutínio científico é uma condição necessária para alcançar esse objetivo. Medicina é uma só: Se alguém faz alguma alegação extraordinária sobre um fenômeno médico, deve estar submetido ao mesmo rigor crítico que qualquer pesquisador no mundo faz sobre determinado evento. O resumo é: Um preparado homeopático não difere em nada de pílulas de farinha. Tendo em posse essas informações – qualquer pessoa pode ter acesso gratuitamente aos artigos científicos nas Universidades públicas do país –, chega ser irônico o uso de parte do recurso público (que fornece subsídio à informação e senso crítico ao indivíduo) parcialmente dividido para financiar projetos em uma linha de pesquisa cuja conclusão já foi satisfatoriamente demonstrada como ineficaz. Então é aqui que fica o questionamento moral: É correto que um órgão governamental continue promovendo recursos humanos e financeiros a uma prática contraditória aos princípios básicos de química, física e biologia, e que ainda vai de encontro aos melhores resultados científicos disponíveis? Embora de natureza um pouco distinta, é esperado que pessoas repudiem uma fraude científica. Por qual razão deixaria de ser uma discussão igualmente ética um órgão de fomento de pesquisa endossar uma prática ausente de respaldo na comunidade científica?

   Alguém poderia refutar: Só teremos condições de concluir sobre a eficácia após dedicar recursos em pesquisas. Não está errado quem alega isso, não fosse pelo fato de que a homeopatia já foi profundamente investigada (sobretudo a nível clínico — pois já foi concebido que poderia haver algum fenômeno básico ainda desconhecido a nível molecular). Nesse sentido, seria algo ao equivalente a defender recursos a uma pesquisa que quisesse novamente descobrir a roda. Além disso, a chamada de apoio financeiro ao projeto não menciona a investigação de eficácia. Ao que tudo indica já se considera a prática eficaz. Segundo o texto publicado na chamada, um dos objetivos é o “estudo para desenvolvimento de monografias de insumos ativos para uso homeopático”. Uma chamada de pesquisa deste tipo não parece fazer sentido se alguém entende que a prática não tem eficácia.
   O apoio do CNPq favorável à homeopatia contradiz o processo rigoroso de revisão por pares ao qual a prática já foi submetida. Não parece ser uma atitude virtuosa especialmente de uma agência de fomento que deveria reconhecer o estado da arte daquilo que está sendo financiado.
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Nota de esclarecimento: O autor não se opõe ao direito dos homeopatas de fazer e vender seus preparados (como já foi defendido aqui). Seria falacioso que, mesmo reconhecendo a não eficácia da prática, disso se seguisse proibição de venda e consumo — sobretudo se este comércio é exercido na esfera privada e com pleno consentimento dos envolvidos.

Novo modelo pode explicar surgimento de autorreplicação nos primórdios da Terra

Post traduzido para o Universo Racionalista 

Crédito: Credit: Maslov and Tkachenko
Quando a vida na Terra começou há mais 4 bilhões de anos - muito antes dos seres humanos, dos dinossauros ou até mesmo as primeiras formas unicelulares de vida -, ela pode ter iniciado como um "soluço" ao invés de um "rugido": Blocos simples de construção moleculares, conhecidos como monômeros, foram agregando-se em cadeias mais longas, chamadas de polímeros, e, sequencialmente, acabaram indo em direção a lagos quentes - que alguns chamam de lodo primordial.
   Então, em algum momento, essas cadeias poliméricas crescentes desenvolveram a capacidade de fazer cópias de si mesmas. A concorrência entre tais moléculas garantiria a existência das mais eficientes na tarefa e, também, a capacidade de fazer cópias mais rápidas ou com maior abundância -- traço que seria compartilhado pelas cópias geradas. Esses replicadores rápidos poderiam preencher o lodo primordial com mais velocidade do que os outros polímeros, permitindo que a informação por eles codificada pudesse ser passada de uma geração para outra, eventualmente, dando origem ao que nós pensamos hoje como a vida.
   Mas, sem registro fóssil para verificar os acontecimentos da Terra primordial, temos uma narrativa que ainda está ausente de alguns capítulos. Uma questão em particular continua a ser problemática: o que permitiu o salto de uma sopa primordial constituída de monômeros individuais para cadeias de polímeros autorreplicantes?
   Uma nova proposta, publicada nesta semana no The Journal of Chemical Physics, postula que a ligação de polímeros pode ter sido auxiliada por uma molécula-modelo, ou seja, a união de dois polímeros auxiliada por essa molécula-modelo poderia ter permitido que eles se tornassem autorreplicantes.
   "Tentamos preencher essa lacuna no entendimento entre os sistemas físicos simples para algo que pode se comportar de forma realista e transmitir informações", disse Alexei Tkachenko, pesquisador do Brookhaven National Laboratory. Tkachenko realizou a pesquisa ao lado de Sergei Maslov, um professor da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign.
 Origens da autorreplicação
   A autorreplicação é um processo complicado. O DNA, base para a vida na Terra hoje, requer uma ação coordenada de enzimas e de outras moléculas a fim de se duplicar. Os primeiros sistemas autorreplicantes eram, certamente, mais rudimentares, mas a sua existência naquela época ainda é um pouco desconcertante.
   Tkachenko e Maslov propuseram um novo modelo que mostra como as primeiras moléculas autorreplicantes poderiam ter trabalhado. O modelo alterna entre as fases "dia", em que os polímeros individuais flutuam livremente, e fases "noite", em que se juntam para formar cadeias maiores via ligação auxiliada por uma molécula-molde. As fases são conduzidas pelas alterações cíclicas das condições ambientais, tais como temperatura, pH e salinidade - que conduzem o sistema para fora do equilíbrio e induzem os polímeros tanto a se unirem ou a se separam.
   De acordo o modelo, durante os ciclos de noite, múltiplos pequenos polímeros ligam-se a cadeias de polímeros maiores, que atuam como molde. Esse molde maior de cadeias mantém os polímeros menores próximos o suficiente para que eles possam formar uma ligação química de cadeias maiores - sendo uma cópia complementar de pelo menos parte da molécula modelo. Com o tempo, os polímeros sintetizados devem predominar, dando origem a um sistema autocatalítico e autossustentável de moléculas grandes o suficiente para potencialmente codificar novas moléculas para a vida.
   Os polímeros, também, podem ligar-se em conjunto sem a ajuda de um molde, mas o processo é um pouco mais aleatório - uma cadeia que se forma em uma geração não será necessariamente levada para a próxima. A ligação assistida por molde, por outro lado, é um meio mais fiel de preservar a informação, uma vez que as cadeias de polímero de uma geração são utilizadas para construir a próxima. Assim, essa proposta combina o prolongamento de cadeias de polímero com a sua replicação, proporcionando um mecanismo potencial de hereditariedade.
Enquanto alguns estudos anteriores têm argumentado que uma mistura dos dois é necessária para sair um sistema de monômeros para outro de polímeros autorreplicantes, o modelo de Maslov e Tkachenko demonstra que é fisicamente possível para a autorreplicação surgir com apenas ligação auxiliada pelo modelo.

"O que nós demonstramos pela primeira vez é que mesmo se tudo que você tem é a ligação auxiliada pelo modelo, você ainda pode iniciar o sistema de sopa primordial", disse Maslov.
   A ideia da autorreplicação auxiliada por uma molécula molde foi originalmente proposta na década de 1980, mas de uma forma qualitativa. "Agora, é um modelo real que pode ser executado através de um computador", disse Tkachenko. "É uma peça sólida de ciência para a qual você pode adicionar outros recursos e estudar os efeitos de memória e herança."


   Com o modelo de Tkachenko e Maslov, a condução a partir de monômeros para polímeros é bem mais repentina. É necessário um determinado conjunto de condições para dar o salto inicial de monômeros para polímeros autorreplicantes, mas essas exigências rigorosas não são necessárias para manter um sistema de polímeros autorreplicantes uma vez que se venceu sobre o primeiro obstáculo.
Uma limitação do modelo que os pesquisadores planejam abordar em estudos futuros é a sua suposição de que todas as sequências de polímero são igualmente prováveis de ocorrer. Transmissão de informações requer variação hereditária -- há determinadas combinações de código de bases para proteínas específicas, que têm funções diferentes. O próximo passo, então, é a de considerar um cenário em que algumas sequências tornam-se mais comuns do que outras, permitindo que o sistema para transmitir informações significativas.
   O modelo de Maslov e Tkachenko se encaixa na proposta conhecida como hipótese do mundo-RNA - a hipótese de que a vida na Terra começou com moléculas de RNA autocatalíticas que, em seguida, levaria a existência da molécula mais estável, porém mais complexa como modo de transmissão de herança, do DNA. Entretanto, por ser uma tese muito geral, pode ser utilizada para testar quaisquer hipóteses sobre a origem da vida que dependa do surgimento de um sistema simples autocatalítico.
   Maslov adiciona: "Nós não estamos tentando resolver a questão de qual material esta sopa primordial de monômeros está vindo" ou quais as moléculas específicas envolvidas. Em vez disso, o seu modelo mostra um caminho fisicamente plausível partindo de monômero indo em direção a polímeros autorreplicante, assim avançando um passo mais para de compreender a origem da vida.
 
 Traçando a origem da vida, de Darwin até os dias atuais 

  Quase toda cultura no planeta tem uma história de origem, uma lenda que explica a sua existência. Os seres humanos parecem ter uma profunda necessidade de uma explicação de como acabamos aqui, neste pequeno planeta girando através de um vasto universo. Os cientistas, também, há muito , têm procurado a história de nossas origens, tentando discernir como, em uma escala molecular, a Terra passou de uma confusão de moléculas inorgânicas para um sistema ordenado de vida. A pergunta é impossível de responder com certeza; não há registro fóssil nem testemunhas oculares. Entretanto, isso não impediu que cientistas de tentarem.
   Ao longo dos últimos 150 anos, nossa compreensão da origem da vida tem espelhado o surgimento e desenvolvimento dos campos de química orgânica e biologia molecular. Ou seja, uma maior compreensão do papel que os nucleotídeos, proteínas e genes desempenham na formação do nosso mundo vivo hoje também melhora, gradualmente, a nossa capacidade de perscrutar o seu passado misterioso.
   Quando Charles Darwin publicou seu seminal "A Origem das Espécies", em 1859, ele falou pouco sobre o surgimento da vida em si, possivelmente porque, na época, não havia nenhuma maneira de testar tais ideias. Suas únicas observações reais sobre o assunto vêm de uma carta posterior a um amigo, na qual ele sugeriu um que a vida surgiu a partir de uma "poça morna" com um rico caldo de química de íons. No entanto, a influência de Darwin era de longo alcance, e suas observações improvisadas formaram a base de muitas origens dos cenários da vida nos anos seguintes.
   No início do século 20, a ideia foi popularizada e expandida por um bioquímico russo chamado Alexander Oparin. Ele propôs que a atmosfera na Terra primitiva era reduzida, o que significa que teve um excesso de carga negativa. Este desequilíbrio de carga poderia catalisar uma sopa pré-biótica de moléculas orgânicas existentes em direção às primeiras formas de vida.
   Os textos de Oparin, eventualmente, inspiraram Harold Urey, que começou a explorar a proposta de Oparin. Urey, em seguida, chamou a atenção de Stanley Miller, que decidiu testar, formalmente, a ideia. Miller tomou uma mistura da qual ele acreditava que os oceanos da Terra primitiva pode ter constituído -- uma mistura de compostos reduzidos, ou seja, composto de metano, amônia, hidrogênio e água- - e a ativou com uma faísca elétrica. A descarga elétrica transformou quase a metade do carbono no metano em compostos orgânicos. Um dos compostos que produziram foi glicina, o aminoácido mais simples.
   O experimento inovador de Miller-Urey mostrou que a matéria inorgânica poderia dar origem a estruturas orgânicas. E, embora a ideia de uma atmosfera redutora tenha caído gradualmente em desuso, sendo substituída por um ambiente rico em dióxido de carbono, a estrutura básica de Oparin de uma sopa primordial rica em moléculas orgânicas ainda continua plausível.
A identificação de DNA como o material hereditário comum para toda a vida, e a descoberta de que o DNA codifica o RNA, que, por sua vez, codifica as proteínas, forneceu uma nova visão sobre a base molecular para a vida. No entanto, forçou, também, os pesquisadores da origem da vida para responder a uma pergunta desafiadora: Como poderia essa maquinaria molecular complicada ter começado? O DNA é uma molécula complexa, requerendo uma equipe coordenada de enzimas e de proteínas para se replicar. Seu surgimento espontâneo parecia improvável.
Na década de 1960, três cientistas -- Leslie Orgel, Francis Crick e Carl Woese –, independentemente, sugeriram que o RNA poderia ser o elo perdido. Já que o RNA pode autorreplicar-se, então, poderia ter agido tanto como material genético como catalisador para o início da vida na Terra. O DNA, mais estável, embora mais complexo, surgiria mais tarde.
   Atualmente, acredita-se, amplamente (embora não universalmente aceito), que, em algum ponto da história, um mundo baseado no RNA dominou a Terra. Mas, como e se houve um sistema ainda mais simples é algo que continua em debate. Muitos argumentam que o RNA é muito complicado para ter sido o primeiro sistema de autorreplicantes na Terra, e que algo mais simples o precedeu.
Graham Cairns-Smith, por exemplo, tem argumentado, desde a década de 1960, que as primeiras estruturas genéticas não foram baseadas em ácidos nucleicos, mas em cristais imperfeitos que surgiram a partir da argila. Segundo ele, os defeitos nos cristais armazenariam as informações que poderiam ser replicado e transmitido de um cristal para outro. Sua ideia, embora intrigante, não é amplamente aceita.
   Alternativamente, outros pesquisadores suspeitam que o RNA possa ter surgido em conjunto com os peptídeos - uma tese conhecida como mundo peptídeo-RNA -, em que ambos trabalharam juntos para construir a complexidade. Os estudos bioquímicos, também, estão fornecendo informações sobre ácidos nucleicos análogos ao RNA, porém mais simples. Ainda, é possível que os primeiros sistemas autorreplicantes na Terra não tenham deixado nenhum vestígio de si mesmos em nossos sistemas bioquímicos atuais.
   É nesse sentido que o recente trabalho de Tkachenko and Maslov traz uma colaboração importante. Sugerem que as moléculas autorreplicantes, tais como o RNA, possam ter surgido através de um processo chamado de ligação auxiliada por um molde. Isto é, sob certas condições ambientais, pequenos polímeros poderiam ser levados a ligar-se com cadeias mais longas de um polímero complementar, mantendo os fios curtos em proximidade suficientes próximos uns dos outros para que eles pudessem se fundir em cadeias mais longas. Através de mudanças cíclicas nas condições ambientais que induzem cadeias complementares que virão juntos, uma coleção autossustentável de hibridizadas -- polímeros autorreplicantes --, capazes de codificar as bases para a vida, poderia ter surgido.
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Fonte:  Phys.org
Tradução: Cícero Escobar
Artigo
"Spontaneous emergence of autocatalytic information-coding polymers," por Alexei Tkachenko and Sergei Maslov, The Journal of Chemical Physics on July 28, 2015: http://scitation.aip.org/content/aip/journal/jcp/143/2/10.1063/1.4922545