Publicado Originalmente no blog Bule Voador
No último mês de Maio, duas publicações na revista Science lançam luz sobre algumas das perguntas ainda em aberto sobre a origem da vida no planeta Terra. O curioso, embora não incomum na ciência, é que ambas podem ser entendidas como complementares uma da outra. Um artigo é sobre a detecção de biomoléculas relevantes na nuvem de poeira e gás que circunda o núcleo de um cometa (coma cometária) e o outro explora um mecanismo viável de produção de bases nitrogenadas (componentes do ADN e ARN) em condições plausíveis na Terra primitiva.
No Céu
A possibilidade de que moléculas de água
e moléculas orgânicas foram trazidos para a Terra primitiva por meio de
impactos de objetos como asteroides e cometas têm sido objeto de debate
nos últimos anos. É nesse contexto que o instrumento espectrômetro de massas ROSINA da sonda Rosetta foi projetado para estudar o coma cometária do cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko. Para quem está esquecido, a sonda Rosetta é a “nave mãe” da sonda Philae, o primeiro instrumento a fazer um pouso controlado em um cometa em órbita.
Em outros estudos, o instrumento O
ROSINA da sonda Rosetta já havia mostrado uma diferença significativa na
composição de água do 67P/Churyumov-Gerasimenko em comparação com a
Terra. Dessa vez, a descoberta é o potencial destes objetos cósmicos de
entregar outros ingredientes da vida na superfície da Terra.
Mais de 140 moléculas
diferentes já formam identificadas no meio interestelar. A despeito
disso, os aminoácidos ainda não haviam sido rastreados. No entanto,
pistas do aminoácido Glicina, um composto orgânico biologicamente
importante e comumente encontrados em proteínas, foram encontrados
durante a missão Stardust da NASA que voou pelo cometa Wild 2
em 2004. Contudo, a contaminação terrestre das amostras de poeira
coletadas durante a análise não havia sido descartada. Agora, pela
primeira vez, detecções repetidas deste aminoácido foram confirmadas
pela sonda Rosetta após analisar o a atmosfera do cometa
67P/Churyumov-Gerasimenko. Importante destacar que a detecção de
aminoácidos em materiais meteoritos caídos na Terra já é bem
estabelecida, sendo mais de 80 deles já reportados em condritos carbonáceos.
A glicina é muito difícil de detectar
devido à sua natureza não-reativa: sublima-se a uma temperatura em torno
de 150°C, o que significa que pouco é liberado como gás a partir da
superfície ou subsuperfície do cometa devido às suas temperaturas frias.
Um dos resultados encontrados no estudo foi uma forte correlação entre a
presença de glicina e poeira, o que segundo os autores sugere uma
liberação da molécula a partir mantos de gelo dos grãos depois de terem
aquecido. Ao mesmo tempo, os investigadores também detectaram moléculas
de metilamina e etilamina, que são precursores da formação de glicina.
Ao contrário de outros aminoácidos, a glicina é a única que foi mostrada
ser capaz de formar, sem água no estado líquido. Segundo a autora
Kathrin Altweeg “A presença simultânea de metilamina e etilamina, e a
correlação entre a poeira e glicina, também indica a forma como a
glicina foi formada”.
Outra detecção interessante feita pela
ROSINA foi, pela primeira vez em um cometa, a presença de fósforo. Como
pode ser visto na Figura 1, é um elemento-chave em
todos os organismos vivos e é encontrada no quadro estrutural do ADN e
ARN. No total, foram identificados 16 compostos orgânicos, incluindo
outras de destaque para o contexto da química prébiótica como o sulfeto de hidrogênio (H2S) e o cianeto de hidrogênio (HCN).
Figura 1: Esquema da
molécula de ARN contendo a base nitrogenada guanina. Um filamento de ARN
é formado de um arcabouço de açúcar (ribose) e fosfato com uma base
ligada covalentemente na posição 1′ de cada ribose. As ligações
açúcar-fosfato são feitas nas posições 5′ e 3′ do açúcar, como no DNA.
Dessa forma, uma cadeia de RNA terá uma ponta 5′ e uma ponta 3′. Os
nucleotídeos de RNA (chamados ribonucleotídeos) contêm as bases adenina, guanina, citosina e uracila (U). No caso do ADN, a Timina está presente no lugar da uracila.
Na Terra
Antes
de sistemas auto-replicantes terem aparecidos, a química prebiótica
(reações químicas que antecedem a origem da vida) deve primeiro ter dado
origem às subunidades que formam a base para os biopolímeros complexos
encontrados em todos os organismos modernos – as proteínas e os ácidos
nucleicos que especificam suas estruturas. Dentre as hipóteses, uma das
mais aceitas atualmente é o “mundo ANR”. Em síntese, propõe que o ARN foi a primeira forma de vida na Terra, com posterior desenvolvimento de uma membrana celular em seu redor e convertendo-se assim na primeira célula procariota.
Entre as evidências que apoiam a
hipótese do “mundo ARN” está inclusa a potencialmente da molécula
catalisar a sua própria síntese e assim facilitando várias outras
reações bioquímicas, além de também possui a capacidade de armazenar
informação genética. Uma análise preliminar das possíveis vias de
síntese levou a equipe da Ludwig-Maximilians-Universitaet (LMU, Munique)
e colaboradores de seu grupo a um esquema de reação – o chamado caminho
FaPy ¬ – que poderia ter sido ativado para formar purinas sob condições
prebióticas. Duas (Adenina e Guanina) das cinco bases de nucleotídeos
que codificam a informação genética armazenada no ARN e ADN são purinas (as demais são as pirimidinas). Elas também fazem parte das moléculas de ATP e GTP,
ambas servindo como fonte de energia para as reações bioquímicas e como
interruptores moleculares no controle de função de proteínas.
O caminho FaPy começa com a ligação da formamida (amida derivada do ácido fórmico) a aminopirimidinas, anéis que podem ser produzidos por uma série de reações entre moléculas de cianeto de hidrogênio.
Isto dá origem a moléculas de formamido-pirimidinas (no inglês,
formamidopyridines; daí o uso da sigla FaPy). Uma sequência de passos de
reações subsequente converte a formamido-pirimidinas em purinas
(adenina e guanina), e vários outros derivados biologicamente
importantes. Os autores demonstram que é possível obter cerca de 70% dos
produtos da via da FaPy como purinas, sendo a adenosina
(formada pela união da adenina e ribose) – uma sub-unidade de ARN
importante – representando cerca de 20%. Com o mecanismo FaPy, foi
descoberta uma via sintética que fornece os componentes centrais da
bioquímica de vida com elevado rendimento e com alta especificidade.
Entre o Céu e a Terra
As moléculas necessárias para o caminho
da síntese FaPy estão disponíveis a partir do ácido fórmico e da
aminipirimidina, que por sua vez podem ser formadas por compostos detectados através das análises da sonda Roseta.
Tomado em conjunto, os dois artigos suportam a ideia de que cometas
entregaram moléculas-chave para que a química na Terra primitiva pudesse
eventualmente formar a vida como conhecemos. Em especial a detecção de
aminoácidos, também suporta outras linhas de pesquisas nas quais têm sido propostas para a formação de peptídeos (formados pela união de dois ou mais aminoácidos) em condições da Terra primitiva, e que inclusive há brasileiros participando.
É verdade que ainda existem lacunas e
dúvidas sobre a origem da vida. Mas com cada vez mais os cientistas têm
trazidos novidades relevantes e animadoras para melhor entendemos uma
parte da velha questão que tanto fascina a humanidade: De onde viemos?
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Artigos científicos:
Altwegg, K. et al., Prebiotic chemicals—amino acid and phosphorus—in the coma of comet 67P/Churyumov-Gerasimenko, Science, 2016.
Becker, S. A high-yielding, strictly regioselective prebiotic purine nucleoside formation pathway, Science, 2016.
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