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terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Ateísmo, Deus e Ética


                                                                                            Originalmente publicado no Bule Voador


Pintura do francês Alexandre-Louis Leloir - Jacó lutando com o anjo, suplicando sua bênção


Como pessoas ateias agem moralmente se a presença de Deus é irrelevante em seu cotidiano? Antes de acusar o bom teísta de preconceito é possível mostrar-lhe que sua ideia sobre ausência de moral na ausência de Deus está equivocada.
Imagine 02 experimentos mentais, e para cada um deles duas possíveis ações:
  1. Maria é casada e frequenta uma academia. Por motivos irrelevantes aqui, considere que seu marido nunca a acompanha nesta atividade. Um homem solteiro se aproxima dela e começa um diálogo. Passados alguns dias, e outros papos, o homem a convida para sair. Ele sabe, entretanto, que Maria é casada. Ela reforça esse detalhe, e mesmo assim ele insiste.
Ação A: sentindo-se incomodada, Maria decide se afastar do homem e troca de academia.
Ação B: Maria cede e acaba traindo o marido.
  1. João está enfurecido com alguém por uma razão banal: Não conseguiu controla-se pelo simples motivo de ter recentemente conhecido uma pessoa da qual discordou dele de vários aspectos políticos atuais.
Ação A: João consegue esfriar a cabeça ao decidir dar uma volta na quadra.
Ação B: João pega numa arma e mata seu interlocutor.
Nos dois exemplos a ação A seria uma das possíveis esperadas naquilo que a maioria das pessoas considera como moralmente correto. Traição e assassinato por razões fúteis são atitudes normalmente tomadas como desprezíveis.
Faço a pergunta: Nos dois casos, por qual razão seria necessário invocar alguma entidade divina para justificar a ação A em detrimento da ação B. Mesmo assumindo que o teísta consiga parar para pensar nos mandamentos em uma situação de vulnerabilidade emotiva, não é óbvio que a crença na existência em Deus seja condição necessária para ações morais corretas. O que está em causa é o seguinte: Até pode ser o caso de em alguma medida a crença em Deus ser relevante para a tomada de ações éticas, mas não é o caso que a crença na sua inexistência (um ateu) impeça da pessoa decidir pela ação A.
Comumente se insiste que ateus são incapazes de agir moralmente. Isso parece assumir que há uma correlação positiva entre acreditar em Deus e ser uma pessoa ética, ou, nas palavras de muitos, que há uma correlação positiva entre ser um ateu e ser infeliz e imoral. Se isso fosse verdade os países escandinavos (como Suécia, Dinamarca e Finlândia que possuem um número expressivo de pessoas declaradas ateias) estariam sempre no topo da lista dos países mais violentos e mais infelizes. O que se vê é justamente o contrário. Acontece que tomar estes dados e assumir (pelo menos a priori) que pessoas ateias são mais felizes e moralmente mais virtuosas está tão equivocado como assumir que pessoas religiosas são mais propensas a serem mais felizes e mais virtuosas pela mera razão de acreditarem em um Deus. Que o ser humano é um mosaico de complexidade psicológica já deveria ser claro. O que é espantoso é a permanência da ideia  falsa que alega impossibilidade de ações morais para a pessoa ateia.
Para quem não consegue vislumbrar a possibilidade de ações morais sem a presença de Deus está desconhecendo o mínimo de um trabalho filosófico extensamente elaborado ao longo da história intelectual humana. Colocando de outra forma a pergunta do teísta: Como seria possível as ações A dos exemplos supracitados se uma pessoa “não tem Deus no coração”? Bem, existem ao menos quatro teses morais que, embora diferenciadas em detalhes, chegariam no mesmo resultado moral. Destas, só uma assume a existência de Deus. Estas éticas são: a cristã, das virtudes, a deontológica/Kantiana e a utilitarista/consequencialista. Com pouca reflexão é possível defender que as ações A são as mais corretas nestas quatro teses éticas. O que fica logo evidente é que a existência de Deus é um tanto irrelevante (mesmo que ele exista) para que pessoas possam agir moralmente.
Não estou assumindo que todas as pessoas ateias conhecem minimamente as teses morais que prescindem da existência de Deus para funcionarem. Mas estou a dizer que uma das coisas que os filósofos eticistas fazem é tentar encontrar razões que normatizam como as pessoas agem (ou deveriam agir) moralmente, mesmo que muitas vezes elas nem saibam como justificar à luz de teses morais o porquê de escolherem a ação A ao invés da B.

Por fim uma alfinetada inevitável: Paulo de Tarso é muitas vezes apontado como um misógino e homofóbico e alegava que só haveria salvação para aquele que aceitar os dogmas sobrenaturais do cristianismo. É verdade, entretanto, que há outros que dirão o diferente: O que importa são as ações, então um ateu com boas ações poderá ir para o céu. Essa defesa, entretanto, embora mais respeitável que a postura de Tarso, desemboca na mesma independência de Deus comentada acima. Você até pode ser uma pessoa melhor acreditando em Deus, mas disso não se segue que será uma pessoa ruim caso não acredite. Se ao ateu não é garantido a salvação cristã (assumindo que isso seja sequer relevante para ele), então eu diria os cristãos: Seja cético com seu Deus, no mínimo ele não gosta muito de pessoas que são curiosas e questionam a existência de uma entidade que não parece fazer muito esforço para mostrar sua existência óbvia no mundo.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Tecnologia e guerras

Máquina Enigma - usada para criptografar e descriptografar mensagens secretas em conflitos durante o século XX na Europa.
Alguns gostam da ideia de que se não fosse algumas guerras nossa tecnologia não teria tido avanços. Eu não gosto dessa ideia: Penso que ela é moralmente condenável e parcialmente equivocada historicamente. Digo parcialmente porque pode ser o caso de que algumas tecnologias tiverem impulso em razão de guerras. A despeito disso, uma postura é entender que esses eventos aconteceram, outra é aceitá-los como corretos. É mais ou menos aquilo o que em filosofia moral identifica-se com ética normativa (como as coisas deveriam ser) e ética descritiva (como as coisas são).

Um dos exemplos mais emblemáticos diz respeito a descoberta de que a radiação micro-ondas poderia aquecer alimentos. Em meados dos anos 40, enquanto trabalhava com desenvolvimento de magnétrons para aperfeiçoar radares para uma empresa militar, Percy Spencer acidentalmente teria derretido uma barra de doce deixada ao lado dos equipamentos. Três anos mais tarde, fornos de micro-ondas já estavam comercialmente disponibilizados nos Estados Unidos.

Acontece que o uso da faixa do micro-ondas não foi a novidade, mas sim manipular essa região do espectro como uso caseiro. Apenas para efeito comparativo, recordemos que o estudo da radiação eletromagnética já vinha sido desenvolvido há mais de séculos. Basta tomar como exemplo a descoberta dos raios-X, que ocorreu sobretudo devido ao trabalho do alemão Wilhelm Röntgen no século XIX, ou, ainda, o estudo da decomposição da luz branca realizada por Newton no século XVII.

O que parece estar em causa aqui é: a existência de conflitos bélicos não são necessários para que a tecnologia tenha avanço. No máximo são condições facilitadoras que, uma vez ausente, não é difícil duvidar da tese que todos os avanços da modernidade pode surgir sem derramamento de sangue. Aliás, não raro algumas tecnologias descobertas ou invenções da ciência aconteceram de maneira independente -- vide as descobertas das linhas escuras de absorção no espectro solar, primeiramente reconhecido por William Wollaston e anos mais tarde redescoberto por Joseph von Fraunhofer, ou as evidências empíricas que originariam a teoria da evolução, por Charles Darwin e Alfred Wallace. O que aprendemos disso: Mais cedo ou mais tarde, a tecnologia de aplicação caseira para aquecer alimentos surgiria.

Há alguma alternativa que respeite a tese moral (normativa) que condena conflitos bélicos? A resposta é sim. Recordo uma. O conselho do filósofo e humanista Bertrand Russell: uma instituição política moralmente saudável seria capaz de enfraquecer a violência e dominação se aumentasse as oportunidades para impulsos criativos ao passo que dificultasse os instintos possessivos. Naturalmente, isso abre espaço para a discussão do que consiste a natureza desses dois impulsos -- mas de forma alguma enfraquece o iluminador conselho, e nos lembra, também, o aviso do Asimov: "A violência é o último refúgio dos incompetentes".