Originalmente publicado no Bule Voador
Pintura do francês Alexandre-Louis Leloir - Jacó lutando com o anjo, suplicando sua bênção |
Como pessoas ateias agem moralmente se a presença de Deus é irrelevante em seu cotidiano? Antes de acusar o bom teísta de preconceito é possível mostrar-lhe que sua ideia sobre ausência de moral na ausência de Deus está equivocada.
Imagine 02 experimentos mentais, e para cada um deles duas possíveis ações:
- Maria é casada e frequenta uma academia. Por motivos irrelevantes aqui, considere que seu marido nunca a acompanha nesta atividade. Um homem solteiro se aproxima dela e começa um diálogo. Passados alguns dias, e outros papos, o homem a convida para sair. Ele sabe, entretanto, que Maria é casada. Ela reforça esse detalhe, e mesmo assim ele insiste.
Ação A: sentindo-se incomodada, Maria decide se afastar do homem e troca de academia.
Ação B: Maria cede e acaba traindo o marido.
Ação B: Maria cede e acaba traindo o marido.
- João está enfurecido com alguém por uma razão banal: Não conseguiu controla-se pelo simples motivo de ter recentemente conhecido uma pessoa da qual discordou dele de vários aspectos políticos atuais.
Ação A: João consegue esfriar a cabeça ao decidir dar uma volta na quadra.
Ação B: João pega numa arma e mata seu interlocutor.
Ação B: João pega numa arma e mata seu interlocutor.
Nos dois exemplos a ação A seria uma das
possíveis esperadas naquilo que a maioria das pessoas considera como
moralmente correto. Traição e assassinato por razões fúteis são atitudes
normalmente tomadas como desprezíveis.
Faço a pergunta: Nos dois casos, por
qual razão seria necessário invocar alguma entidade divina para
justificar a ação A em detrimento da ação B. Mesmo assumindo que o
teísta consiga parar para pensar nos mandamentos em uma situação de
vulnerabilidade emotiva, não é óbvio que a crença na existência em Deus
seja condição necessária para ações morais corretas. O que está em causa
é o seguinte: Até pode ser o caso de em alguma medida a crença em Deus
ser relevante para a tomada de ações éticas, mas não é o caso que a
crença na sua inexistência (um ateu) impeça da pessoa decidir pela ação
A.
Comumente se insiste que ateus são
incapazes de agir moralmente. Isso parece assumir que há uma correlação
positiva entre acreditar em Deus e ser uma pessoa ética, ou, nas
palavras de muitos, que há uma correlação positiva entre ser um ateu e
ser infeliz e imoral. Se isso fosse verdade os países escandinavos (como
Suécia, Dinamarca e Finlândia que possuem um número expressivo de
pessoas declaradas ateias) estariam sempre no topo da lista dos países
mais violentos e mais infelizes. O que se vê é justamente o contrário.
Acontece que tomar estes dados e assumir (pelo menos a priori) que
pessoas ateias são mais felizes e moralmente mais virtuosas está tão
equivocado como assumir que pessoas religiosas são mais propensas a
serem mais felizes e mais virtuosas pela mera razão de acreditarem em um
Deus. Que o ser humano é um mosaico de complexidade psicológica já
deveria ser claro. O que é espantoso é a permanência da ideia falsa que
alega impossibilidade de ações morais para a pessoa ateia.
Para quem não consegue vislumbrar a
possibilidade de ações morais sem a presença de Deus está desconhecendo o
mínimo de um trabalho filosófico extensamente elaborado ao longo da
história intelectual humana. Colocando de outra forma a pergunta do
teísta: Como seria possível as ações A dos exemplos supracitados se uma
pessoa “não tem Deus no coração”? Bem, existem ao menos quatro teses
morais que, embora diferenciadas em detalhes, chegariam no mesmo
resultado moral. Destas, só uma assume a existência de Deus. Estas
éticas são: a cristã, das virtudes, a deontológica/Kantiana e a
utilitarista/consequencialista. Com pouca reflexão é possível defender
que as ações A são as mais corretas nestas quatro teses éticas. O que
fica logo evidente é que a existência de Deus é um tanto irrelevante
(mesmo que ele exista) para que pessoas possam agir moralmente.
Não estou assumindo que todas as pessoas
ateias conhecem minimamente as teses morais que prescindem da
existência de Deus para funcionarem. Mas estou a dizer que uma das
coisas que os filósofos eticistas fazem é tentar encontrar razões que
normatizam como as pessoas agem (ou deveriam agir) moralmente, mesmo que
muitas vezes elas nem saibam como justificar à luz de teses morais o
porquê de escolherem a ação A ao invés da B.
Por fim uma alfinetada inevitável: Paulo
de Tarso é muitas vezes apontado como um misógino e homofóbico e
alegava que só haveria salvação para aquele que aceitar os dogmas
sobrenaturais do cristianismo. É verdade, entretanto, que há outros que
dirão o diferente: O que importa são as ações, então um ateu com boas
ações poderá ir para o céu. Essa defesa, entretanto, embora mais
respeitável que a postura de Tarso, desemboca na mesma independência de
Deus comentada acima. Você até pode ser uma pessoa melhor acreditando em
Deus, mas disso não se segue que será uma pessoa ruim caso não
acredite. Se ao ateu não é garantido a salvação cristã (assumindo que
isso seja sequer relevante para ele), então eu diria os cristãos: Seja
cético com seu Deus, no mínimo ele não gosta muito de pessoas que são
curiosas e questionam a existência de uma entidade que não parece fazer
muito esforço para mostrar sua existência óbvia no mundo.
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