segunda-feira, 14 de julho de 2014

Tecnologia e guerras

Máquina Enigma - usada para criptografar e descriptografar mensagens secretas em conflitos durante o século XX na Europa.
Alguns gostam da ideia de que se não fosse algumas guerras nossa tecnologia não teria tido avanços. Eu não gosto dessa ideia: Penso que ela é moralmente condenável e parcialmente equivocada historicamente. Digo parcialmente porque pode ser o caso de que algumas tecnologias tiverem impulso em razão de guerras. A despeito disso, uma postura é entender que esses eventos aconteceram, outra é aceitá-los como corretos. É mais ou menos aquilo o que em filosofia moral identifica-se com ética normativa (como as coisas deveriam ser) e ética descritiva (como as coisas são).

Um dos exemplos mais emblemáticos diz respeito a descoberta de que a radiação micro-ondas poderia aquecer alimentos. Em meados dos anos 40, enquanto trabalhava com desenvolvimento de magnétrons para aperfeiçoar radares para uma empresa militar, Percy Spencer acidentalmente teria derretido uma barra de doce deixada ao lado dos equipamentos. Três anos mais tarde, fornos de micro-ondas já estavam comercialmente disponibilizados nos Estados Unidos.

Acontece que o uso da faixa do micro-ondas não foi a novidade, mas sim manipular essa região do espectro como uso caseiro. Apenas para efeito comparativo, recordemos que o estudo da radiação eletromagnética já vinha sido desenvolvido há mais de séculos. Basta tomar como exemplo a descoberta dos raios-X, que ocorreu sobretudo devido ao trabalho do alemão Wilhelm Röntgen no século XIX, ou, ainda, o estudo da decomposição da luz branca realizada por Newton no século XVII.

O que parece estar em causa aqui é: a existência de conflitos bélicos não são necessários para que a tecnologia tenha avanço. No máximo são condições facilitadoras que, uma vez ausente, não é difícil duvidar da tese que todos os avanços da modernidade pode surgir sem derramamento de sangue. Aliás, não raro algumas tecnologias descobertas ou invenções da ciência aconteceram de maneira independente -- vide as descobertas das linhas escuras de absorção no espectro solar, primeiramente reconhecido por William Wollaston e anos mais tarde redescoberto por Joseph von Fraunhofer, ou as evidências empíricas que originariam a teoria da evolução, por Charles Darwin e Alfred Wallace. O que aprendemos disso: Mais cedo ou mais tarde, a tecnologia de aplicação caseira para aquecer alimentos surgiria.

Há alguma alternativa que respeite a tese moral (normativa) que condena conflitos bélicos? A resposta é sim. Recordo uma. O conselho do filósofo e humanista Bertrand Russell: uma instituição política moralmente saudável seria capaz de enfraquecer a violência e dominação se aumentasse as oportunidades para impulsos criativos ao passo que dificultasse os instintos possessivos. Naturalmente, isso abre espaço para a discussão do que consiste a natureza desses dois impulsos -- mas de forma alguma enfraquece o iluminador conselho, e nos lembra, também, o aviso do Asimov: "A violência é o último refúgio dos incompetentes".

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Valorizando a astrologia

Autoconhecimento e exercício (ou apreciação) de simbolismos são duas atividades que em maior ou menor grau parecem-me relevantes para qualquer indivíduo. Por isso (mas não apenas) que pessoas gostam de música, cinema, fotografia e literatura. Adiciono nessa pequena lista a astrologia. Quando entendida como uma prática (não aquela popular das páginas finais dos jornais, pois, nesse caso, é muito mais um consumo do que prática) pode servir muito adequadamente às duas atividades supracitadas. Quando eu digo que podem é apenas isso: algumas pessoas sentem-se confortáveis e genuinamente encontram prazer em exercer práticas que satisfazem vontades particulares. E se alguém objetar que isso não fornece nenhum apoio a cientificidade da astrologia eu concordarei. Entretanto não é isso que está sendo colocado em causa. Acontece, penso eu, que é possível defender algum valor intrínseco a astrologia, mesmo que ela careça de evidências empíricas. Do mesmo modo, por exemplo, literatura e cinema não compartilham características do que tipicamente entendemos como ciência, e não por isso são destituídas de valor. Assim, outro valor pode ser atribuído: a interação com pessoas - algo que envolve, inevitavelmente, conhecer novas e, nesse processo, potencialmente permitir a descobrir mais sobre o próprio praticante.

Pode ser o caso (e parece que é) que a astrologia falhe em demonstrar efeitos empíricos observáveis no mundo. Independente disso, nenhum dos três valores -- autoconhecimento, apreciação de simbolismo e interação social --, precisam, a priori, passar por rigorosos testes de confiabilidade empírica. Até porque alguns deles, como os dois últimos, talvez nem sejam adequados a submissão de padrões universais, uma vez que envolvem subjetividades (simbolismos) e preferências (interações). Também pode ser o caso que a astrologia falhe em ser um bom método/atividade no desenvolvimento desses três valores. Ainda assim, não devemos incorrer a duas práticas comuns de alguns (apressados) detratores convencionais: i) menosprezar intelectualmente os indivíduos praticantes e ii) desconsiderar que, em todo o caso, a astrologia pode ser uma mera diversão como um passatempo qualquer, até mesmo no caso no qual os três valores não sejam considerados como dignos de atribuição. Não vejo muito problema que o não praticante não reconheça ii) como merecedor de atenção, mas parece-me condenável quando i) é excessivamente praticado.

sábado, 7 de junho de 2014

Jesus, crianças e Aristóteles

''É característico de um homem de tato dizer e escutar aquilo que fica bem a uma pessoa digna e bem-educada; pois há coisas que fica bem a um tal homem dizer e escutar a título de gracejo; e os chistes de um homem bem-educado diferem dos de um homem vulgar, assim como os de uma pessoa instruída diferem dos de um ignorante. Isto se pode ver até nas comédias antigas e modernas: para os autores das primeiras a linguagem indecente era divertida, enquanto os das segundas preferem insinuar; e ambos diferem bastante no que tange à propriedade do que dizem.'' Aristóteles, em Ética a Nicômaco

A marcha para Jesus parece-me problemática por si só. Darei algumas razões: Até onde eu conheço das leituras bíblicas, a atual marcha para Jesus é algo não apenas desnecessário mas também incoerente com as escrituras. Enquanto o evento histórico da entrada de Jesus em Jerusalém (base para o Domingo de Ramos) teve um cunho social (uma voz contra a religião à época que explorava politicamente cidadãos), não vi ainda nenhuma bandeira da marcha combatendo problemas atuais, como racismo, transfobia, homofobia, analfabetismo, machismo, etc. Aliás, o que se vê, em edições anteriores, é justamente a insistência de irritantes discursos contrários a união homoafetiva. Somado a isso, a marcha parece recusar outros grupos cristãos, o que faz o ecumenismo passar longe. Além disso, pelo menos no Brasil, a organização da marcha é manchada pelo histórico da Igreja Apostólica Renascer em Cristo, fundada pelo casal Hernandez. Em 2007, o casal foi acusado de evasão de divisas, quando foram detidos por estarem levando mais de 50 mil dólares escondidos em meio a bíblias (apesar de terem declarado a alfândega não mais de 10 mil). Isso tudo sem falar de abusos ao laicismo quando governantes evangélicos suportam financeiramente a marcha com dinheiro público.

Apesar disso tudo, não está em jogo a liberdade individual da pessoa de participar da marcha. Por outro lado, é de uma outra liberdade que me preocupa deveras. É a liberdade intelectual das crianças. Embora pareça inocente em primeira análise, creio que a (quase) imposição religiosa para levar crianças em cultos e encontros é um grande mal. Discordo em muita coisa do que Dawkins fala sobre as religiões, mas concordo com ele que é uma espécie estupro mental dogmatizar crianças em tenra idade em nome de uma religião específica que um adulto em liberdade de consciência o faz -- e para manter a honestidade, considero que o mesmo erro é aplicável para os ateístas dogmáticos.

Um dos elementos que Aristóteles enfatizava em sua ética era o papel da educação moral nas crianças. Apesar disso, ele reconhecia que isso não era uma condição necessária nem suficiente para tornar-se um indivíduo virtuoso, mas provavelmente uma condição facilitadora. Nesse sentido, educar crianças com vieses explícitos a um determinado credo não deixa de ser uma ação problemática a longo prazo, tanto pior quanto mais dogmático o educador é. Não tenho nesse momento evidências empíricas para suportar, por isso coloco a tese de maneira doxástica: é problemático porque prejudica na capacidade de empatia e cognitiva dessas crianças.

A ironia é que muitas das ideias aristotélicas serviram de inspiração para os filósofos medievais cristãos (alguns deles de competência intelectual distinta, como Tomás de Aquino). Uma pena que alguns setores do cristianismo atual, e sobretudo evangélicos pouco críticos, não sigam adequadamente bem o conselho do grego.

terça-feira, 3 de junho de 2014

É provável a existência e eventual visita de vida extraterrestre inteligente antropomórfica?

                Texto também publicado no blog da Liga Humanista Secular do Brasil - Bule Voador
Um cenário de extraterrestres (não humanoides) em um ritual de droga recreativa. Fonte: http://www.alexries.com/Galpages/c-smoking.htm

Nos últimos anos, o número de exoplanetas (planetas fora do sistema solar) descobertos têm aumentado progressivamente. Independente disso, o imaginário sobre a possibilidade de vida extraterrestre data de um tempo mais antigo do que a primeira descoberta de um exoplaneta no início da década de 90. Embora muitas alegações extraordinárias e implausíveis envolvam o tema, alguma coisa parece certa: até o momento não existe nenhum relato confiável que demonstre algum contato extraterrestre. Assim, uma interessante pergunta pode ser colocada: É provável a existência e eventual visita de vida extraterrestre inteligente antropomórfica?

É verdade que a pergunta pode induzir um mal entendido. Assim, resolvemos isso com a seguinte afirmação: Para que uma visita de seres extraterrestres antropomórficos ocorra, é uma condição necessária a existência dos mesmos. Dessa forma, no primeiro momento, tentarei mostrar razões em defesa da improbabilidade da existência, e, em seguida, faremos o seguinte exercício: mesmo considerando que existam, é provável a visita?

Pensemos um pouco na nossa história: A primeira explosão de vida animal na Terra ocorreu há aproximadamente 540 milhões de anos atrás — a chamada explosão cambriana. Desde então, pelo menos duas grandes extinções em massa aconteceram por aqui: A extinção do Permiano-Triássico (251 milhões de anos atrás), considerada a mais severa, levando a extinção de mais de 90% das espécies marinhas e 70% das espécies sobre continentes; e a mais conhecida (embora não a mais severa) extinção de Cretáceo-Terciário (há 65 milhões de anos atrás), que vitimou, entres outros, os dinossauros.

Foi somente após esses dois eventos que ocorreu a explosão de diversidade dos mamíferos placentários. Em outras palavras, não parece ser absurdo alegar que a o aparecimento da espécie humana se deu, muito provavelmente, devido (mas não apenas) a extinção de outras espécies na qual a coexistência tornaria difícil a nossa existência (dinossauros carnívoros gigantescos, por exemplo). Disso não se segue que não existiam mamíferos antes da existência dos dinossauros, o Castorocauda é um exemplo. Por outro lado, considerando os seres antropomórficos, e todo o tempo desde a formação do planeta, sua trajetória evolutiva foi bem mais lenta. De fato, lembremos do célebre calendário cósmico saganiano ao nos recordar que o aparecimento dos primeiros humanos só teria ocorrido em algo em torno de 22:30 de 31 de Dezembro (nesse calendário, o 1° de Janeiro marca o Big Bang). Somos muito recente no cosmos, também diria Sagan.

O estado atual da biologia aponta: O planeta Terra possui 8,7 milhões de espécies, número do qual nós representamos apenas uma unidade nessa miríade de vida; a estimativa atual do número de bactérias chega a 5 milhões de trilhões de trilhões (5 seguidos de 30 zeros). Além disso, registros fósseis apontam para a existência de bactérias há pelo menos 3,6 bilhões de anos, sendo que a célula eucariótica só deve ter surgido há cerca de 1,8 bilhões de anos (a Terra tem idade de 4,5 bilhões de anos). Dizer que o planeta é das bactérias não é uma metáfora tão exagerada.

Como comentado por PZ Myers, diferentes soluções evolutivas podem ser encontradas para problemas adaptativos; ou seja, não parece razoável esperar que adaptações complexas e especializadas encontre caminhos evolutivos universais. Os biólogos estão dispostos a admitir que complexidade não é uma marcha unidirecional ao que é mais complexo ou ao que é mais parecido ao ser humano. Em outras palavras, imaginar o bipedalismo como aparência provável de seres extraterrestres inteligentes parece um pouco da falta de bom senso frente a originalidade e diversidade de exemplares dos organismos vivos.
Extra 1Essas foram algumas razões para objetar a tese da existência de organismos antropomórficos no Universo. Que basicamente possuem o mesmo esqueleto argumentativo: a improbabilidade desse tipo de morfologia tendo em vista o modelo (número e formato) dos organismos na Terra. É verdade que essa argumentação falha ao se basear nos organismos somente do planeta Terra. Mas é uma limitação, por enquanto, justa, uma vez que não conhecemos outros locais com vida. De qualquer forma, se recebermos alguma visita de civilização extraterrestre, parece provável que não o reconheceremos como seres cinzentos baixinhos, bípedes e com olhos escuros.
Outras objeções (algumas das quais englobam a questão da visita considerando que seres antropomórficos existam) são possíveis: i) a não existência de evidências de seres antropomórficos não-terráqueos (apesar do delírio coletivo de alguns que sugerem a existência de abduções); ii) a história evolutiva sugere a possibilidade de uma infinidade de morfologias distintas; iii) a necessidade de pressupor alguma convergência cósmica de seres antropomórficos não-terráqueos, algo bastante problemático tendo em vista a possibilidade de caminhos evolutivos distintos em condições atmosféricas diferentes, iv) mesmo que seres antropomórficos existam em outros lugares no cosmos, não se segue disso que eles sejam capazes de desenvolver tecnologia suficiente capaz de realizar viagens interestelares e v) mesmo que seres antropomórficos inteligentes (do ponto de vista tecnológico) existam em outros lugares no cosmos, é necessário que o tempo de existência deles seja suficiente de não extingui-los (por alguma extinção em massa natural ou artificial) antes que desenvolvam tecnologia capaz de viagens cósmicas. Por fim, outra objeção curiosa é a que segue: vi) mesmo que as condições de v) sejam satisfeitas, esses seres devem saber da existência do planeta Terra – uma dificuldade real tendo em vista a imensidão do universo. Naturalmente, sobretudo iv), iv) e vi) pressupõem que esses seres detêm vontade de investigar novos planetas – ou seja, que esse desejo não seja algo intrínseco ao processo cognitivo humano somente (de fato, o desejo de conhecer e explorar novos mundos nem é compartilhado por todos os humanos – alguns são totalmente desinteressados por esses assuntos).

Sobre i), mais uma observação: A tese que defende a existência de vida extraterrestre antropomórfica suficientemente avançada – do ponto de vista tecnológico -, ao ponto de ser capaz de realizar viagens interestelares, tem falhado em mostrar qualquer evidência razoavelmente aceitável em favor suas proposições. Em outras palavras, o paradoxo de Fermi ainda não foi resolvido. Aliás, a tese do Grande Filtro defende que há alguma(s) etapa(s) durante o processo de evolução dos organismos que torne a vida inteligente improvável ou, no caso de existir, tendenciosa a auto-destruição.

Uma vez que esse assunto muitas vezes causam mais paixão do que razão, de antemão prevejo acusações. Não estou alegando que: i) a origem da vida (seja o lá o que venha a ser “vida”) é um fenômeno raro no universo; ii) vida extraterrestre não existe; iii) vida extraterrestre inteligente é muito improvável e iv) a emergência de vida complexa multicelular é uma combinação improvável de eventos e circunstâncias astrofísicas e geológicas (o que me afasta um pouco da adesão da Hipótese da Terra Rara).

Considerando o estado atual sobre astrobiologia, não parece exagero a seguinte afirmação: vida extraterrestre, não necessariamente antropomórfica, detentora de curiosidade e tecnologia suficiente para perscrutar novos planetas, se existem, são em número tão baixos que nenhum contato físico parece provável em alguma escala temporal menor do que o tempo que nos resta antes da morte de nossa estrela. É uma visão pessimista, reconheço. Espero que essa tese esteja errada.

quinta-feira, 27 de março de 2014

"Olá, estranho": por que o filme "Closer - perto demais" completa 10 anos tornando-se um jovem clássico

Observação: O texto abaixo contém spoiler massivo. Se você ainda não viu o filme não é recomendável a leitura.
 ______________________________________________________________________
"O amor não é suficiente?"
"Closer - perto demais" é um filme de 2004, dirigido pelo alemão Mike Nichols. O cineasta é responsável de outras obras de relevância, como "Quem tem medo de Virginia Woolf?" (seu primeiro filme, em 1966), "A primeira noite de um homem" (1967) e "Ânsia de amar" (1971). Nichols tem longa tradição no teatro. E, provavelmente, isso já explica duas constatações: sua ausência nos cinemas desde 2007 ("Jogos do poder" foi o filme que se seguiu a "Closer"); e parte de escolhas estéticas e narrativas do filme "Closer".

Escrevo o texto tendo em mente as seguintes motivações: Após 10 anos de lançamento, o filme ainda se mantém atual (resistiu ao tempo)? Continua a dar conta da complexidade das relações amorosas, que na época o roteiro estava notadamente (não apenas, mas também) preocupado com as discussões de relações virtuais? Ainda é capaz de causar impacto nos espectadores qua ainda não assistiram? Outra motivação é de caráter assumidamente emotivo, pois gosto muito do filme. O considero como um laboratório de relações humanas. E como homenagem aos 10 anos da obra resolvi escrever sobre.

Inicialmente, é importante lembrar as quatro personagens principais no qual o filme se desenvolve:

Alice - Natalie Portman
Dan - Jude Law
Larry - Clive Owen
Anna - Julia Roberts

"A primeira coisa sobre amor que você não entende é o compromisso"

Logo na primeira cena, dois estranhos (Alice e Dan) intercalam olhares. À medida que o som colocado diretamente na cena de abertura é paulatinamente mesclado com o som ambiente, o cineasta cria um trabalho de som simples, mas não desinteressante. Assim, essa é uma opção eficiente de apresentar dois dos personagens principais. Além disso, situa o espectador não apenas ao estado de espírito dos futuros amantes mas também revela parte do ambiente da grande cidade na qual o filme terá desenvolvimento.


"Onde está seu amor...Eu não posso fazer nada com essas suas palavras fáceis"
É particularmente interessante a naturalidade dos primeiros encontros: Alice retira carinhosamente o óculos da face de Dan; apesar de ter sido um primeiro encontro incomum, Larry e Anna interagem de maneira muito natural. Nesse sentido, enquanto estamos sendo apresentados aos quatro personagens que movem a narrativa, também somos levados a entender parte da natureza dos mesmos que contrasta com a dureza e muitas vezes indiferença na qual o comportamento deles predominará no futuro.

A inteligência da narrativa fica evidente em escolhas acertadas que ajudam no desenvolvimento da trama. Algumas dessas escolhas são de roteiro, e outras visuais. Como exemplo da primeira, note que Anna é fotógrafa. Mais do que isso, ela fotografa pessoas desconhecidas - e isso, novamente, ressalta parte do eixo central da narrativa, resumido pelo slogan "olá, estranho". Segue-se disso o exemplo da escolha visual: durante uma exposição de Anna, Alice e Larry (nesse momento marido de Anna) encontram-se pela primeira vez. Nada poderia ser mais inteligente, e metaforicamente belo, do que a opção desse encontro ocorrer defronte a fotografia de Alice eternizada na imagem com olhar triste (tirada meses atrás por Anna). Note também que o livro escrito por Dan chama-se "O Aquário", o que reforça ainda mais a ideia que o filme sirva como um palco no qual somos os observadores.

Mike Nichols também opta por economizar a narrativa sempre que possível. O que poderia, à primeira vista, ser prejudicial, justamente pelo fato da existência de vários personagens com personalidades complexas tenderem a confundir o espectador. Assim, nota-se comportamentos cíclicos - que não apenas evidencia algo típico das relações humanas - mas também deixa o filme esteticamente agradável. Isso pode ficar muito claro quando lembramos que Alice conta a Dan como teria deixado seu ex-namorado; a frase dita por ela é a mesma que futuramente usaria para romper com Dan. Além disso, no início do filme Alice aparece caminhando sozinha, e Dan também. Apesar de contextos psicológicos diferentes, essa cena é, no sentido de formato, quase a mesma a que volta a aparecer no término do filme. Alice e Dan novamente aparecem intercalados, mas dessa vez distanciados geograficamente. Notar também a cena quando Alice diz a Larry "Olá, doutor" - que é evidentemente uma maneira interessante de remeter o espectador novamente à reflexão da temática do filme.
"Eu não sou capaz de mentir a você, pois te amo"

Um dos elementos principais de um bom filme é a evolução dos personagens. Essa transformação pode ser física ou psicológica, positiva ou negativa, mas é importante para a qualidade de um personagem que este não seja o mesmo daquele no início da projeção - sobretudo em narrativas conduzidas pelo personagem em detrimento da ação. É um desafio atingir isso de maneira satisfatória em pouco tempo de tela. Uma maneira efetiva de conduzir isso é através de maquiagem, roupa e penteado. Nesse sentido, "Closer" não deixa a desejar. Todos os personagens passam por mudanças significativas quando comparado o início e final da projeção. Nichols é eficiente em ressaltar isso, especialmente nas cenas finais, quando todos os quatro persosagens ganham destaque com o intuito de mostrar seus destinos.

Ainda sobre o desenvolvimento psicológico das personagens, é possível observar o cuidado do roteiro em trabalhar a as características de cada atuação, sem torná-las unidimensionais. Por exemplo, Larry tem tendências mais agressivas e parece sempre mais obcecado pelos detalhes sexuais (especialmente no momento da revelação da traição de Anna). Alice oscila entre a meiguice e o aparente desapego com que toma suas decisões. Dan, mesmo demonstrando calmaria e simpatia, parece não dominar minimamente suas emoções - como fica evidente nas cenas em que parece obcecado pelo passado de Alice com Larry, culminando por agredí-la.

Alguns alegam que "Closer" falha em mostrar a passagem do tempo. Penso que é uma acusação desonesta. É verdade que anos se passam no decorrer do filme, e o tempo exato pode não ficar evidente ne primeira vez que o vemos. Independente disso, é fácil notar a passagem do tempo em diversas situações. Alguns elementos de maquiagem claramente fortalecem isso, como no caso da mudança de cabelo de Alice ou a presença de diálogos que expõem objetivamente palavras como "há meses".
"Eu não sou uma ladra."

Talvez o grande mérito do filme - e é uma das razões que o tornam um jovem clássico - é sua capacidade de levantar questões atemporais, como: Até onde devemos conhecer alguém para afirmar interesse amoroso? Apenas um encontro pode ser suficiente? Ainda que não seja, como negar a intensidade de um sentimento (mesmo que seja apenas físico)? É fácil definir a suposta linha que divide luxúria de amor? Existe alguma espécie de vida útil para o amor? E ainda sobre o próprio filme: As personagens estavam mesmo apaixonados? Ou estavam mais comprometidos com seu próprios egoísmos? Por que Alice teria mentido sua verdadeira identidade? Mas qual o motivo dela revelar seu nome apenas para Larry? As relações virtuais são vetores de desentendimento, ou apenas intensificam o que já é próprio do ser humano? Parece que as personagens não se entendem adequadamente, apesar da aproximação física. Isso reflete parte dos relacionamentos modernos? Parece que estão mais preocupados com seus próprios prazeres, e assim é legítimo concluir que estão falhando em reconhecer que a necessidade do outro é condição necessária para garantir a felicidade de ambos?

A vertente teatral do cineasta fica evidente quando identificamos que o filme é concentrado em diálogos. E essa característica é bem explorada ao não infantilizar as relações amorosas - justamente porque o filme está comprometido no estudo dessas relações que, muitas vezes, são os momentos em que mostramos parte do que o ser humano pode ter de pior. Apesar do formato tipicamente teatral, a competência técnica de Nichols com relação ao cinema é muito acurada. Tanto a fotografia como a montagem são concentradas em função das personagens e suas falas. Isso acentua dramaticidade do filme, que, mesmo focando em relacionamentos, não necessita de cenas de sexo para explicitar a complexidade das relações.

Por fim, uma consideração pessoal. Ao mesmo tempo que amo eu desprezo as personagens. Talvez pelo fato de que o filme é como um palco para que possamos descobrir mais sobre nós mesmos. A complexidade psicológica daqueles personagens é algo que me assombra - sou capaz de encontrá-los na vida real, e o pior, já fui capaz - em menor intensidade que eles, felizmente - de tomar atitudes que eu mesmo considerei desprezíveis. Talvez porque parte daquilo que consideramos falhar no amor nada mais é do que a marca inerente do que é ser humano. Assim, talvez o ato de cometer (inadvertidamente) a dor no outro nem seja o maior erro - mas não aprender com as sutilezas dos erros é uma grave falha moral - coisa que as personagens de "Closer" parecem não reconhecer. Costumo dizer que não é apenas a vida que imita a arte, mas parece-me que o contrário é recorrentemente mais plausível: é a arte que imita a vida.

______________________________________________________________________

P.S.: Apesar de tentar usar um pouco do conhecimento que tenho aprendido sobre linguagem cinematográfica, esse texto não é necessariamente uma crítica. Crítica cinematográfica é também uma profissão. Aqui escrevo apenas como um amador.

P.P.S.: As frases abaixo das imagens são retiradas do filme, mas não necessariamente estão atribuídas ao momento exato da respectiva imagem.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Da Itália até os replicantes

Blow out
A imagem escraviza, já disse algum poeta.

No cinema, talvez não houve alguém que tivesse explorado de maneira tão genial a limitação da imagem - no sentido de que sempre há alguma inacessível -, como fez Michelangelo Antonioni. Dessa forma, em "Blow Up" (1966), o cineasta italiano mostra a impotência, não apenas como espectador, mas a do próprio personagem principal, quando este torna-se obcecado por uma foto. Uma imagem com o potencial de revelar; que não nem ser alcançável - e se for, como garantir a certeza daquilo que os pixels mal formados sugerem?

Anos mais tarde, Brian de Palma comandaria a direção de "Blow out" (1981). Com óbvia referência ao Antonioni, a versão do americano explorava dessa vez outra limitação dos sentidos, o som - que uma vez exposta na tela bidimensional, explicitava ao mesmo tempo um dos recursos que mais revolucionaram o cinema, e igualmente mantinha a sedução de seu suspense. A obra depalminiana foi sempre muito ousada no que diz respeito à estética visual; alguns dizem que De Palma é uma cópia barata de outro mestre que não apelava ao óbvio - Alfred Hitchcock. Isso é uma leitura leviana da obra do cineasta americano.

De Palma foi representante da ideia que a imagem cinematográfica pode ao mesmo tempo desempenhar o papel narrativo principal, e, por isso mesmo, ser trabalhada não necessariamente com o enfoque nos personagens. Assim, o visual - o que a tela mostra e também esconde - deve ser mais visceral que os próprios personagens. Razão essa, entre outras, que De Palma teve sempre interesse na obra de Hitchcock e Antoninoni - constantemente inserindo própria originalidade.

Não tenho certeza, mas arrisco-me a dizer que Ridley Scott teve forte influencia a partir da obra de Antonioni. Parece-me claro isso na cena de Blade Runner (1982), quando o caçador de androides destrincha uma foto - cena essencial para o desenvolvimento da narrativa. O contexto da cena do italiano é diferente da que acontece no mundo futurista, mas a inquietação - a busca pela identidade de um acontecimento escravizada na imagem - é essencialmente a mesma.

De Antonioni, passando por Hitchcock, De Palma e chegando a Scott, algo fica evidente: o cinema é um intercâmbio de inspirações; talvez mais do que isso, é talvez a única possibilidade de se libertar da frase do poeta - ou pelo menos causar a ilusão disso, através do aparente conforto da imagem em movimento, a qual estamos sempre à mercê daquilo que o cineasta coloca à disposição de nossos olhos.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

E o cinema brasileiro como vai? Muito bem, obrigado.



O filme "Eu me lembro" (Edgard Navarro, 2005) mostra a trajetória de uma personagem desde sua infância em Salvador até sua fase adulta, percorrendo as décadas de 50, 60 e 70. A década seguinte é tema para o documentário "Rock Brasília" (Vladimir Carvalho, 2011) que aborda um período no qual o país passou por uma profusão de bandas de rock na capital. A década atual foi palco para o filme "2 Coelhos" (Afonso Poyart, 2012), o qual retrata a crise existencial de um sujeito ambíguo que vive na intensidade da cidade de São Paulo. São Paulo é a cidade na qual a personagem do filme "Céu de Suely" (Karim Aïnouz, 2006) vivia antes de retornar a Iguatu, no interior do Ceará; em certo momento ela confessa ter vontade de ir morar em Porto Alegre. Porto Alegre é o local de filmagem para um dos filmes gaúchos mais originais dos últimos anos (gravado todo em um único plano-sequência), chamado "Ainda orangotangos" (Gustavo Spolidoro, 2007).

Os cinco filmes acima são uma pequena parcela do atual riquíssimo cinema brasileiro. As produções são diversificadas tanto em gênero como em temática. A dimensão continental do país favorece que cineastas possam realizar seus filmes de acordo com a cultura regional; de modo que um filme gravado no Ceará mostrará peculiaridades locais distintas de outro gravado em São Paulo ou no sul do país. Isso proporciona uma versatilidade de conteúdo narrativo e estético, com potencialidade de ser mais heterogênea que a mega indústria de Hollywood (lá as produções são majoritariamente realizadas em Los Angeles e Nova York)

Uma questão apressada: os filmes são bons? Não é algo simples de responder, visto que o gosto estético varia a cada espectador. É um questionamento secundário; pois antes de julgar a qualidade da obra deve-se, obviamente, ver os filmes. É sabido que o brasileiro, em média, torce o nariz para a produção nacional. Parte do preconceito é explicado (mas não justificado) tendo em vista a baixa qualidade técnica dos filmes produzidos pela Embrafilmes (vale salientar que houveram expressivas exceções) na década de 80 (criada em 69 e extinta na década de 90). Aliado a isso a produção nacional da primeira metade da década de 90 ficou praticamente estagnada, o que, talvez, incentivou ainda mais para a manutenção do estigma que as produções da década passada carregavam. Entretanto o cenário nacional recebeu uma nova onda de incentivo através de leis incentivos à cultura na segunda metade da década de 90, o que ficou conhecido de a “retomada” cinematográfica.

Quando alguém alega que cinema nacional só tem porcaria eu respondo com outra pergunta: será que você conhece cineastas como (exemplo de filme): Anna Muylaert ( Durval Discos), Eduardo Coutinho (Cabra Marcado para Morrer), Cacá Diegues (Bye Bye Brasil), Sanda Werneck (Sonhos Roubados), Andrucha Waddington (Casa de Areia), Fabiano de Souza (A última estrada da praia), Cao Hamburger (O ano em que meus pais saíram de férias), Hilton Lacerda (Tatuagem), Carlos Gerbase (Menos que anda), Lírio Ferreira (Árido movie), Kleber Mendonça Filho (O som ao redor), Carla Camurati (Copacabana), Hector Babenco (O passado), Beto Brant (Cão sem dono), Luis Fernando Carvalho (Lavoura Arcaica), Caludio Assis (Amarelo Manga), Marcelo Gomes (Cinema, Aspirinas e Urubus), Edgar Navarro (O homem que não dormia), Marco Dutra (Trabalhar Cansa), Caetano Gotardo (O que se move)?
O recente filme "Tatuagem" (2013) é mais um exemplar da rica multiplicidade do cinema Pernambucano contemporâneo, que começou em 1996 com o "O baile perfumado" e não deu sinal de que vai parar, como é evidente em filmes como "Amarelo manga" (2002), "Baixio das bestas" (2006) e "Febre do rato" (2011).

Nessa pequena lista não tem nenhum "cult", são cineastas que estão na ativa ano após ano. Negar essa profusão de filmes de excelente qualidade parece ser um típico caso de cherry picking.

Outra questão que está intrínseca a nossa produção é a sua divulgação. Até onde eu saiba não existe nenhum cinema no país onde existam exibições apenas de filmes nacionais (com exceção a mostras), coisa que já ouvir dizer existir ali ao lado nos hermanos argentinos. Mas a mera constatação que temos um problema de divulgação/distribuição não anula o fato que produções nacionais de qualidade existem (e não são ponto fora da curva).

É muito curioso o sujeito que diz não gostar de filme nacional, mas é geralmente o mesmo que diz "poxa, acabei vendo um filme e nem parecia ser brasileiro." Como se nossa produção fosse alguma aberração artística. Com relação a essa imbecilidade vale a resposta do José Padilha (ao comentar sobre o sucesso de “Tropa de elite”) quando ele diz que basta um filme bem filmado e com uma boa produção para que as pessoas o comparam com uma pretensa existência de um modelo correto de fazer cinema (no caso, o de Hollywood). E mais do que isso, é o que eu chamo de “preguiça fílmica” ou “preconceito fílmico”. Note, por exemplo, o trato que as locadoras dão aos filmes nacionais: ao colocarem em estantes separadas de outros filmes estão sugerindo que cinema nacional é um gênero. Gênero cinematográfico pode até ser motivo de debate entre cinéfilos, mas certamente não é uma nacionalidade que o define.

Infelizmente, o preconceito (injustificado) aos filmes brasileiros ainda perduram. Recentemente, o crítico Pablo Villaça foi desafiado por um de seus leitores para criar uma lista de vinte filmes nacionais que comprovassem a qualidade e diversidade da nossa atual produção. Resultado: a lista apresentada pelo crítico teve quase cinco vezes mais filmes do que o leitor havia pedido.
"Filme Demência" (1986) é uma das obras mais importantes do cinema marginal.  Com referências óbvias a Goethe e Jean Luc Godard, conhecemos um personagem marcado por dúvidas e conflitos que não necessariamente serão resolvidos. 
Eu saliento a “preguiça fílmica” também para mostrar que a alegação que o Brasil nunca teve filmes de gênero reconhecidamente importantes é um erro histórico (provavelmente porque a pessoa não conhece esse histórico). Vários cineastas, infelizmente já mortos, foram responsáveis por movimentos internacionalmente conhecidos (como Cinema Novo e o Cinema Marginal); e muitos desses filmes são obras-primas: Mário Peixoto (Limite), Walter Hugo Khouri (Noite Vazia), Galuber Rocha (Deus e diabo na terra do sol), Carlos Reichenbach (Filme demência) e Sérgio Person (São Paulo Sociedade Anônima) são alguns deles.

Creio que parte da motivação para esse texto se concentrou em dois aspectos: i) desmistificar a ideia recorrente que o cinema nacional atual não produz filme de qualidade apreciável e ii) incentivar o espectador a explorar o atual riquíssimo cinema brasileiro que tem sido desenvolvido há quase vinte anos (período da “retomada”), além de procurar pelas obras brilhantes do nosso histórico cinematográfico ( Como o “Cinema Novo” e o “Cinema Marginal”).