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sábado, 20 de setembro de 2014

Sobre a felicidade

Texto também publicado no blog da Liga Humanista Secular do Brasil (LiHS), o Bule Voador

[O sonho da felicidade, de Constance Mayer]




“Aprender a amar a solidão. Ficar mais
sozinho consigo mesmo. O problema com
os jovens é a preocupação com as turbulentas e
agressivas ações para não se sentirem sozinhos
e isso é uma coisa triste. O indivíduo deve
aprender a ser como uma criança, o que não
significa estar sozinho. Significa não se
aborrecer consigo mesmo
. O que é um indício
muito perigoso, quase uma doença.”

[Andrei Tarkovski, cineasta russo - grifo meu]
 

 
Felicidade é algo difícil de definir e caracterizar. O texto a seguir é inspirado em algumas ideias de alguns filósofos e também em manifestações artísticas (música e poesia). Refletir sobre o tema parece ser algo que todo mundo já fez em maior ou menor grau, e tentar descobrir referências de quem já se dedicou sobre o assunto pode ser uma tarefa gratificante.

Uma maneira de conceituar a felicidade é dizendo que ela é, em geral, um estado de satisfação perante à situação no mundo. Essa noção difere, por exemplo, da noção de bem-aventurança. Esta é o ideal de satisfação independente da relação do sujeito com o mundo (por isso muitas vezes atribuído a religiões), e aquela é um conceito mais mundano e dependente, ao que parece, de outras relações do mundo ao redor.

Para muitos, a felicidade é caracterizada apenas por um estado de espírito subjetivo, ou seja, exclusivamente dependente da satisfação do indivíduo. Por outro lado, essa componente, embora importante, não é a única. Christopher Shields pontua: uma concepção objetiva de felicidade sustenta que esta consiste em satisfazer alguns critérios que não são determinados pelos desejos do agente. Dito de outra forma, isso exige que uma pessoa tenha uma vida bem-sucedida e de florescimento, e estas condições nem sempre estão no domínio do agente. Sobre isso, o filósofo Robert Nozick também adiciona: se somente a felicidade subjetiva é a que importa, então viver com o cérebro constantemente conectado em uma cuba simulando um cenário de felicidade (o que ele chama de "máquina do prazer") seria condição suficiente para a vida fazer sentido; o resto tudo seria irrelevante. Resumindo, tomar a pílula que induziria o sentimento de felicidade eterna, de modo que ficássemos apenas sentados e comendo, não parece ser felicidade coisa alguma -- pelo menos objetivamente.

A defesa da felicidade objetiva recai em outro tema, ainda mais amplo, sobre o sentido da vida. Com efeito, não é tarefa primária da filosofia fornecer ingredientes normativos sobre o sentido -- muito embora ela forneça (tem fornecido) um interessante material para reflexão. É comum a defesa de que uma felicidade meramente subjetiva poderia diminuir o aspecto do valor à vida e, dessa forma, comprometendo seu sentido.

Outros dirão que felicidade é única coisa que importa. O Robert Nozick rejeita essa visão: segundo ele, é irônico que aqueles que alegam isso conseguem distorcer o sabor do que significa os momentos de felicidade (quando tudo parece maravilhoso, desde o nascer do sol até a maneira como os cachorros brincam). Uma visão dessas, portanto, restringe em muito a diversidade de momentos da vida. A felicidade é uma entre várias outras coisas que importam. Talvez seja o caso de ser a mais importante -- mas disso não se segue que é a única. Nesse sentido, propagandas do tipo “coca-cola é a felicidade” só pode ser vagamente e superficialmente verdadeiro naqueles dias de calor, para quem gosta. No resto, é uma frase medíocre. 

Felicidade impede doenças, vários acreditam. Isso é mentira! Doenças são de causas multi-variadas, como ambientais e genéticos. Colocar a culpa da eventual doença de alguém dizendo que ela não é feliz é, talvez, inverter a ordem: é muito provável que a infelicidade seja consequência, e não causa, da doença.

Muitos dirão que as vicissitudes impedem a felicidade. Em alguns casos, certamente. Ou apenas a dificultam. Em outros, vale o o conselho sábio de Sêneca: os eventos de queda na vida são aqueles que fornecem a oportunidade de reforçar o que há de melhor em nós. Aristóteles dizia algo parecido nesse sentido: felicidade é uma atividade. Não é ficar parado cotidianamente que alguém será feliz. 
Não é, portanto, fazer a escolha de Endimião: segundo o mito, lhe foi concedido por Zeus a escolher o que quisesse; e ele, considerado muito belo, escolheu dormir para sempre, pois assim poderia permanecer jovem e imortal.
 
Felicidade é coisa só (seja lá o que essa coisa for), é o que se escuta de alguns. Talvez seja mesmo. Alguns a identificam com o prazer. Isso é um erro! Lembremos novamente Aristóteles: para o grego, o prazer consiste antes no repouso do que no movimento. O prazer é, certamente, constitutivo da felicidade. Mas não é a felicidade. Ou seja, é necessário o prazer para a felicidade, mas seria um desperdício e um erro moral que fosse apenas isso. Viveríamos como ruminantes, também diria o grego. E mais: os prazeres podem atuar como um obstáculo ao pensamento, e o são proporcionalmente a quanto mais nos deleitamos a eles. Outros exemplos colocam dúvida a tese do prazer como identificação da felicidade: pode ser prazeroso vivenciar momentos do intelecto de uma criança, mas é pouco provável que alguém preferisse viver desta forma a maior parte do tempo; algumas práticas causam prazer, mas podem induzir vergonha no indivíduo. Disso tudo não se segue, enfatizo, que o prazer não deve fazer parte da vida -- defender isso seria contradizer a natureza humana. O que parece estar em causa é: algumas atividades devem ser escolhidas por elas mesmas independente do prazer que ela nos traz. 

Dinheiro é sinônimo de felicidade, dizem vários. Se o anterior era um erro, este é um erro crasso! É confundir bens intrínsecos com bens extrínsecos. Dinheiro é da segunda espécie, ou seja, o buscamos para conseguir outras coisas. Ele por ele mesmo não é um bem moral. 

Uma vez que outra aparece alguém dizendo que estar apaixonado é uma condição necessária para estar feliz. Eu diria que pode ser uma condição facilitadora. Um momento desses pode ser de grande entusiasmo, mas pode (algumas vezes) levar ao sofrimento. Nesses casos, a banda escocesa Nazareth resumiu de maneira simples e acertada: “O amor machuca, é apenas uma mentira criada para te deixar triste.” Naturalmente, isso não é uma defesa contra a paixão, pelo contrário. Vale, portanto, o conselho de Fernando Pessoa: ame, presente na saudade; ame, enfim, com grande liberdade. A ideia central aqui é: depender exclusivamente de uma paixão para estar feliz parece uma visão excessivamente restrita frente ao que o mundo pode oferecer.
Para outros, conhecimento é proporcional a infelicidade. Um exemplo ilustrativo já mostra algo distorcido dessa ideia: é desanimador saber da existência da corrupção, mas é melhor que saibamos e consigamos propor alternativas de extingui-la o máximo possível do que não saber absolutamente nada sobre. Ou, nas palavras do filósofo de John Stuat Mill: "Melhor ser um Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito". Uma tese normativa aceitável é: seja um sábio e satisfeito concomitantemente. Penso, aliás, que a relação entre conhecimento e felicidade é diretamente proporcional, e não inversamente, como o senso comum defende. Ou talvez, a melhor metáfora é uma curva cheia de inflexões – assim como várias outras coisas na vida são. Haverá casos limites em que ser ignorante sobre algo -- ou apenas não não estar atualizado de algo --,  pode fazer com que a pessoa aproveite melhor (com mais qualidade) o pouco tempo que ainda lhe resta na vida. 

Alguns dizem que há algum segredo muito misterioso na felicidade. Daniel Dennett diria: "Encontre algo que seja mais importante do que você, e dedique sua vida a isso. Podemos subordinar nossos interesses genéticos para outros interesses. Nenhuma outra espécie fez algo sequer semelhante até hoje".

Alguns religiosos identificam a crença em Deus com felicidade. Acredito que seja possível, mas é muito limitada a uma visão subjetiva. Apesar disso, não parece ter nada de moralmente errado, talvez apenas seja uma postura incompleta da natureza humana. O que é moralmente equivocado é alegar que a falta de religião (ou crença em Deus) conduz a uma vida infeliz.

Ao fim e ao cabo, "somos pequenos bípedes, mas com sonhos gigantes." Mas isso são palavras da poeta Diane Ackerman (que abria alguns capítulos dos livros do Carl Sagan) descrevendo nossa limitação e inquietude humana. E daí? Outro poeta responderia: quanto mais poético, mais verdadeiro.

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Sugestão de leitura

Robert Nozick; The Examined Life
Desidério Murcho; Sísifo e o sentido da vida em Pensar outra vez: Filosofia, valor e verdade
Christopher Shields; Viver bem: a ética de Aristóteles

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Valorizando a astrologia

Autoconhecimento e exercício (ou apreciação) de simbolismos são duas atividades que em maior ou menor grau parecem-me relevantes para qualquer indivíduo. Por isso (mas não apenas) que pessoas gostam de música, cinema, fotografia e literatura. Adiciono nessa pequena lista a astrologia. Quando entendida como uma prática (não aquela popular das páginas finais dos jornais, pois, nesse caso, é muito mais um consumo do que prática) pode servir muito adequadamente às duas atividades supracitadas. Quando eu digo que podem é apenas isso: algumas pessoas sentem-se confortáveis e genuinamente encontram prazer em exercer práticas que satisfazem vontades particulares. E se alguém objetar que isso não fornece nenhum apoio a cientificidade da astrologia eu concordarei. Entretanto não é isso que está sendo colocado em causa. Acontece, penso eu, que é possível defender algum valor intrínseco a astrologia, mesmo que ela careça de evidências empíricas. Do mesmo modo, por exemplo, literatura e cinema não compartilham características do que tipicamente entendemos como ciência, e não por isso são destituídas de valor. Assim, outro valor pode ser atribuído: a interação com pessoas - algo que envolve, inevitavelmente, conhecer novas e, nesse processo, potencialmente permitir a descobrir mais sobre o próprio praticante.

Pode ser o caso (e parece que é) que a astrologia falhe em demonstrar efeitos empíricos observáveis no mundo. Independente disso, nenhum dos três valores -- autoconhecimento, apreciação de simbolismo e interação social --, precisam, a priori, passar por rigorosos testes de confiabilidade empírica. Até porque alguns deles, como os dois últimos, talvez nem sejam adequados a submissão de padrões universais, uma vez que envolvem subjetividades (simbolismos) e preferências (interações). Também pode ser o caso que a astrologia falhe em ser um bom método/atividade no desenvolvimento desses três valores. Ainda assim, não devemos incorrer a duas práticas comuns de alguns (apressados) detratores convencionais: i) menosprezar intelectualmente os indivíduos praticantes e ii) desconsiderar que, em todo o caso, a astrologia pode ser uma mera diversão como um passatempo qualquer, até mesmo no caso no qual os três valores não sejam considerados como dignos de atribuição. Não vejo muito problema que o não praticante não reconheça ii) como merecedor de atenção, mas parece-me condenável quando i) é excessivamente praticado.