segunda-feira, 28 de março de 2016

A ética cristã

Originalmente postado no blog Bule Voador


Muitos cristão professam encontrar nos ensinamentos morais de Jesus as respostas para todas as questões morais da vida modera. Desnecessário dizer, Jesus abordou pouquíssimas das preocupações morais da sociedade atual. Por exemplo, ele não disse nada diretamente sobre a moralidade ou imoralidade do aborto, a pena de morte, guerra, escravidão, contracepção, ou discriminação social ou racial. Infelizmente, não é claro o que se pode deduzir sobre estes tópicos a partir de seus ditos ou de sua conduta prática. Sua doutrina de não resistir ao mal sugere que ele seria contra todo tipo de guerra, porém seu comportamento violento contra os cambistas nos templos sugere que ele pode considerar a violência como uma causa santa justificada. Seu dito “ame seu vizinho”, que implica amar seus inimigos, sugere que ele seria contra a pena de morte, porém suas ameaças ao fogo do inferno aos pecadores sugere que às vezes ele possa considerar a morte ou outra punição violenta como apropriada. 


Jesus não faz nenhum pronunciamento explícito sobre questões morais relacionadas ao socialismo, democracia, tirania e pobreza e o que pode-se inferir a partir de algumas coisas que ele diz parece estar em conflito com outras coisas. Considere sua atitude contra a pobreza. Sua defesa de vender tudo e dar aos pobres (Lucas 18:22) pode sugerir que ele se opunha à pobreza e queria eliminá-la. Entretanto, quando uma mulher usou um unguento caro na cabeça — e assim pudendo ser vendidos e dado o dinheiro aos pobres –, ela foi repreendida por discípulos, e Jesus a defendeu dizendo que “você tem sempre os pobres com você” (Mateus 26:11). Ele também parecia defender a pobreza material afirmando que um homem rico não pode entrar no Reino dos Céus (Mateus 9:23-24) e também que os pobres são abençoados e que deles é o reino dos céus (Lucas 6:20). Em alguns casos, o silêncio de Jesus sobre a moralidade de uma prática pode só pode ser interpretada como uma aprovação tácita. Por exemplo, embora a escravidão fosse comum no tempo de Jesus, não há nenhuma evidência de que ele atacou a prática. Como Morton Smith observou (*): 

Havia inúmeros escravos do imperador e do estado romano; o Templo de Jerusalém tinha escravos; o Sumo Sacerdote possuía escravos; todos os ricos e quase todo a classe média possuíam escravos. Tanto quanto nos é dito, Jesus nunca atacou esta prática. Ele entendeu esse estado de coisas como garantida e moldou suas parábolas em conformidade. Como Jesus coloca, o principal problema para o escravo não é para se libertar, mas para ganhar elogios de seu mestre. Parece ter havido revoltas de escravos na Palestina e na Jordânia na juventude de Jesus; e um líder milagroso de uma tal revolta teria atraído um grande número de seguidores. Se Jesus tivesse denunciado a escravidão, deveríamos quase certamente deveríamos ter indícios disso. Nós não temos estes indícios, então a suposição mais provável é que ele não disse nada a respeito. 


Além disso, se Jesus tivesse sido contra a escravidão, é provável que o seus seguidores anteriores teriam seguido seus ensinos. No entanto, Paulo (1 Corínios 7:21,24) e outros escritores cristãos primitivos guiavam os cristãos para continuar a prática de escravidão. Infelizmente, a aparente prática de aprovação tácita da escravidão de Jesus é obscurecida pela versão revisada e autorizada do Novo Testamento de uma tradição grega da palavra “doulos” como “servo” Por exemplo, na Versão Revisada Padrão, Jesus diz que o servo é como seu mestre (Mateus 10:25). Uma tradução mais exata seria que um escravo é como seu mestre.
 _________

 Fonte: Trecho do capítulo Christian Ethics, do livro The Case Against Christianity, escrito por Michael Martin (*)Reirado do “Biblical Arguments for Slavery,” em Free Inquiry 7 (Spring 1987): 30.

domingo, 27 de março de 2016

Deus, uma hipótese improvável

Publicado originalmente no blog Bule Voador

Estima-se algo em torno de 8,7 milhões de espécies habitando atualmente o planeta. Também tem sido descobertas cerca de 15.000 novas espécies novas a cada ano. Isso sem falar no total de espécies já existentes em toda a história dos 4,5 bilhões de anos do planeta, que deve beirar na faixa dos 5 bilhões. Lá fora, no cosmos, os números são ainda mais impressionantes: Só na nossa galáxia, a via láctea, estima-se existir 100 bilhões de planetas. Estimativas tímidas sugerem algo em torno de 200 bilhões de galáxias no universo, que podem conter alguns 17 bilhões de planetas semelhantes à Terra (sem mencionar os outros bilhões de planetas não rochosos, do tipo Júpiter, que abundam o Universo). Até onde sabemos, há apenas uma única espécie que desenvolveu habilidade cognitiva de perscrutar criticamente o ambiente em que vive. Em nosso planeta nós somos a única espécie capaz disso.

No meio dessa monstruosidade de números, alguns — com arrogância ou medo da solidão cósmica –, alegam que há alguma entidade responsável pela criação dos mundos e das espécies. Mais estranho ainda, que esta entidade de alguma forma se preocupa com os interesses humanos. O que não deixa de ser curioso é justamente a correlação existente entre a espécie que desenvolveu raciocínio e um dos seus sub-produtos culturais mais populares: A existência de Deuses. Uma das dificuldades em sustentar essa crença é a tentativa de inserir qualidades aos Deuses que são comportamentos e vontades flagrantemente humanas. Quando alguém atribui consciência, preocupação moral, inteligência, criatividade e poder de criação (especialmente criação de seres à “imagem e semelhança” de Deus) está antropomorfizando e antropocentrizando a suposta entidade. Não há nenhuma novidade nisso, já que reflete coisas como o que Xenófanes já percebeu há mais de 2.000 anos: “Se os bois e os cavalos tivessem mãos e pudessem pintar e produzir obras de arte similares às do homem, os cavalos pintariam os deuses sob forma de cavalos e os bois pitariam os deuses sob forma de bois.”

Este é um dos problemas: Dedicar importância excessiva a atributos relacionados a uma espécie que representa uma fração muitíssimo pequena de todo o universo não é a melhor estratégia para mostrar plausibilidade de uma entidade teísta. Como já dito, somos apenas uma espécie das 5 bilhões que já existiram em um planeta num universo que pode existir outros 17 bilhões de planetas parecidos. Disso se segue que as suposições antropomórficas e antropocêntricas são, com elevada probabilidade, possivelmente falsas. Em miúdos: Só há um tipo de inteligência que tivemos acesso até hoje, a inteligência humana. Logo, há uma grande chance de que a criação de deuses seja um produto dessa inteligência.

No que diz respeito a influência de Deus no mundo, encontra-se no imaginário popular a ideia de que “ele sabe o que faz”. Para ilustrar o quanto o senso comum muitas vezes só reproduz crenças preguiçosas, tomemos o exemplo de um recente desastre natural. No estado de São Paulo, o recente deslizamento já ceifou a vida de 16 pessoas, além de causar sofrimento humano e material em habitantes de várias cidades. A pergunta é: Sabe Deus o que faz? Há algumas maneiras de tentar explorar com mais claridade essa pergunta, como: Ele sabe por que foi ele quem o fez? Ou apenas sabe e não faz nada para impedir? Ou tenta fazer algo e não consegue? Ora, se ele causou o desastre, então não é benevolente. No entanto, se ele não causou, mas apenas tem conhecimento do ocorrido, então não fez nada para impedir. Logo, não é onipotente. Se ele tentou evitar mas não conseguiu também não é onipotente. Ou ele não sabe? Então não é onisciente. Então por qual razão chamá-lo de Deus?

É possível articular algumas respostas para as questões anteriores, muito embora nem sempre o teísta que apenas repete ideias do senso comum as apresente. Uma delas é a que se segue. Deus possui todos os atributos (como benevolência, onipotência, onisciência, onipresença), mas abre mão conscientemente e temporariamente de alguns deles para que, sob a ação do mal, os humanos possam mostrar o melhor de si. Entretanto, isso ainda traria outros problemas, já que não é óbvio que a existência do mal incremente a existência do bem e não responde sobre a incompatibilidade dos atributos.

Para muitos, a ideia de um Deus é uma crença psicologicamente agradável. Apesar de toda a insistência e ligação emocional com a hipótese da existência de Deuses, a possibilidade dessa(s) entidade (s) não parece plausível. E uma vez concluindo isso, e se é com a verdade que estamos comprometidos, não é pelo fato de uma crença ser emocionalmente confortante que ela deve ser mantida.

Ceticismo sobre a ressureição


1. Uma alegação de milagre é inicialmente improvável em relação ao nosso conhecimento prévio;
2. Se a alegação é inicialmente improvável em relação ao nosso conhecimento prévio e as evidências para ela não são fortes, então não deve ser acreditado;
3. A ressurreição de Jesus é uma alegação de milagre;
4. A evidência para a ressurreição não é forte;
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Portanto, a ressurreição de Jesus não deve ser acreditada.
Enquanto que a premissa 2 é auto-evidente, e a premissa 3 é uma definição, as premissas 1 e 4 são as que requerem justificações.
*Premissa 1: A probabilidade inicial das alegações miraculosas
Por que supor que a ressurreição, como uma reivindicação milagre, inicialmente é improvável? Tradicionalmente um milagre é definido como uma violação de uma lei da natureza causada pela intervenção de Deus. A improbabilidade de milagre no sentido tradicional pode ser entendidos da seguinte forma. Para o bem do argumento, suponhamos que o teísmo, a crença na existência de Deus, é verdade. Então podemos esperar uma intervenção de Deus curso natural dos acontecimentos de forma a violar uma lei natural? Nós não podemos. Se o teísmo é verdade, então milagres no sentido de uma intervenção divina são possíveis, uma vez que há um ser sobrenatural que poderia fazê-los, mas isso não quer dizer que tais milagres são mais propensos de ocorrer do que não ocorrer. De fato, Deus teria boas razões por nunca utilizar milagres para alcançar seus propósitos. Deve-se considerar que este tipo de milagre não pode ser explicado pela ciência e, na verdade, é um impedimento para uma compreensão científica do mundo. Considere também que grandes dificuldades e controvérsias surgem em identificação de milagres. Seja qual for os bons efeitos que os milagres possam ter, eles também impedem, enganam e confundem. Uma vez que um Deus todo- poderoso parece ser capaz de alcançar seus propósitos de maneiras que não têm efeitos infelizes, concluo que há realmente motivo para supor que a existência de milagres é inicialmente improvável mesmo em uma visão religiosa do mundo.
[...]
Vamos supor que é provável que Deus faria sacrificar seu filho para a redenção da humanidade. Ainda não se seguiria que a encarnação e a ressurreição são eles próprios prováveis, pois estes eventos aconteceram em um tempo e local particular. No entanto, Deus poderia ter encarnado e morrido pelos pecadores em um número indefinido de outras ocasiões.
Não parece haver qualquer razão a priori para supor que ele teria encarnado, ou tivesse morrido, em um tempo e local particular em detrimento de outros tempos e lugares e em diversas outras maneiras. Consequentemente, mesmo que alguma encarnação ou ressurreição seja provável, não há uma razão a priori para supor que ele teria encarnado e morrido como Jesus no primeiro século da Palestina em uma cruz e ressuscitado em relativa obscuridade. Na verdade, dada as inúmeras alternativas à disposição de Deus, parece improvável que a encarnação e a ressurreição teriam acontecido no local e tempo onde supostamente aconteceu.
*Premissa 4: A insuficiência generalizada das evidências
O corpo de Jesus ressuscitado foi supostamente transformado em um corpo sobrenatural vivo. Sendo assim, todas as declarações a seguir devem ser verdadeiras:

1. Jesus é incapaz de ser ferido a qualquer momento após 33 d.C.
2. Jesus é incapaz de morrer a qualquer momento após 33 d.C.
3. Jesus é incapaz de envelhecer a qualquer momento após 33 d.C.
4. Jesus é incapaz de estar doente a qualquer momento após 33 d.C.
5. Jesus é capaz de se mover à vontade instantaneamente de um lugar para outro a qualquer momento depois de 33 d.C.
6. Jesus é capaz de atravessar paredes em qualquer momento após 33 d.C.
Vamos chamar de Jesus sendo trazido de volta à vida com esses atributos de sentido forte da ressurreição, e sendo trazido de volta à vida sem atributos sobrenaturais de sentido fraco da ressurreição. A maioria das evidências citadas para a ressurreição de Jesus, mesmo que esteja livre de outros problemas, não dá suporte à ressurreição no sentido forte. Por exemplo, a alegação do túmulo vazio, a conduta dos discípulos, muitos das pós-aparições da ressurreição e a ascensão do cristianismo, no máximo suportam a ressurreição no sentido fraco. Na verdade, as únicas provas relevantes que podem sustentar alguma versão da ressurreição no sentido forte parece ser as descrições de aparições do Jesus ressuscitado em que é dito que ele teria manifestado habilidades sobrenaturais em algum tempo e lugar particular.
Isto significa que todo o ônus para a afirmação de que Jesus ressuscitou no sentido forte sentido repousa sobre estas poucas descrições. Mas, mesmo que tais descrições são precisas, a ressurreição de Jesus no sentido forte não estaria comprovada. Por exemplo, suponha que um tenha razão para acreditar que Jesus não foi ferido por algum evento que ferido seus discípulos. Isso não seria suficiente para suportar a declaração (1) [Jesus é incapaz de ser ferido a qualquer momento após 33 d.C.]. Para satisfazer, alguém só poderia inferir essa conclusão ou a partir de uma teoria geral e bem aceita ou mostrar evidências que Jesus não foi ferido em uma gama de outras circunstâncias após 33 d.C. Mas nenhuma teoria está disponível, e os tipos de provas necessárias estão em falta.
[...]
A probabilidade de ressurreição é inicialmente baixa. Embora Deus poderia fazer milagres, não há razão para supor que no máximo ele iria fazê-lo raramente. Mesmo que alguém assuma que Deus fizesse uso de um milagre para salvar a humanidade, há muitas outras maneiras ele poderia fazer isso sem sacrificar seu filho e ressuscitá-lo. Além disso, mesmo se ele escolheu a encarnação, morte e ressurreição, não há nenhuma razão para pensar que deveriam ser no lugar e tempo onde supostamente aconteceu.
Desde a ressurreição é improvável, a evidência para ela deveria ser muito forte, mas não é. Alegadamente, Jesus foi ressuscitado no sentido forte, isto é, trouxe de volta à vida transformada em um ser com os atributos sobrenaturais. Contudo, a evidência de costume citada, por exemplo, o túmulo vazio, é irrelevante para o estabelecimento que Jesus tinha esses atributos. Além disso, o tipo de prova que é necessário é indisponível. Além disso, mesmo se assumirmos que Jesus ressuscitou no sentido fraco, a prova não é forte o suficiente para superar a improbabilidade inicial.
[...]
Se a ressurreição realmente ocorreu, Deus não seria incerto que fez: Teria feito como um evento para além da dúvida racional. Um argumento semelhante é dado por J. L. Schellenberg (1993), que alega que a existência de descrença razoável é evidência contra a existência de Deus. Portanto, a grande importância teológica da ressurreição é incompatível com a sua incerteza epistêmica.
[Livre tradução do artigo "Skeptical Perspectives on Jesus ’ Resurrection", Micahel Martin in The Blackwell Companion to Jesus -Wiley-Blackwell (2010)]

domingo, 24 de janeiro de 2016

Reflexão sobre racismo: Contextos e bonecos

 Originalmente publicado no blog Bule Voador.


Bonecos da empresa Paladone
 
Uma empresa britânica confeccionou bonecos com penteados de variados estilos, todos eles projetados para limpar louça. São personagens masculinos e femininos que apresentam diferentes características, algumas relacionadas à cor da pele e à cultura pop de décadas atrás. Se consultarmos a linha completa do fabricante, encontraremos a representação de mulheres e homens, brancos e negros, rainhas e membros da guarda real inglesa, e também dançarinos de discotecas, cada qual inserido em seu estilo peculiar. Porém, quando telespectadores do programa Big Brother Brasil 16 flagraram o boneco negro, de penteado black power, exibido na cozinha como utensílio de limpeza que desempenharia a mesma função que uma “bucha de prato”, milhares de pessoas entenderam que aquele momento se configurou como racismo, em mais um dos lamentáveis episódios desse problema em nosso país. Entretanto quando alegam que a imagem do boneco afro possui teor racista, o que exatamente querem dizer? Que o fabricante é racista? Que o consumidor é racista? Ou que, simplesmente, quem não viu maldade naquilo também é racista? A princípio, a hipótese de que a empresa responsável pela criação dos bonecos seja racista me parece um equívoco, pois se ela tivesse a finalidade de degradar os negros, certamente não encontraríamos referência a diferentes culturas musicais, incluindo black music e rock in roll, na linha de bonecos fabricados.

Como não tenho visto muitos argumentos sendo defendidos de modo pacífico, tentarei elaborar ideias equilibradas com base nos comentários que circularam nas redes sociais. Não simpatizo muito com a estratégia do binarismo em tudo o que ocorre no mundo (é ou não é racismo), mas, em nome da claridade de pensamento, talvez eu acabe fazendo isso em um momento ou outro.

Entendo o racismo como sendo discriminação baseada nas características fenotípicas de um indivíduo. Já a discriminação, entendo ser a crença de que determinada pessoa detém caracteres físicos, morais ou intelectuais que a colocam em uma situação de inferioridade.

Um argumento bastante utilizado pode ser posto da seguinte forma: Se a exposição do boneco deixa alguém desconfortável, trata-se de uma exposição racista. O boneco causou desconforto a alguém, logo, sua exposição é racista.

O que se segue é o seguinte: Como objeto manufaturado, concedo que o boneco tenha causado desconforto a algumas pessoas. Meu problema é com a primeira premissa. Afirmar que algo causa desconforto a alguém não estabelece as condições necessárias e suficientes para definirmos o racismo. Talvez, devo admitir, isso seja uma condição facilitadora porque o desgosto da pessoa negra sugere (mas não encerra o debate) que há algo de errado na exposição do boneco. Porém, defender que toda sensação de desgosto é sinônimo de discriminação é alargar, ou até mesmo banalizar, o conceito de discriminação. É por isso que não está em causa o direito de nos sentirmos ofendidos. O que está em causa é que, uma vez que uma pessoa se sinta ofendida diante do boneco, isso não estabelece, automaticamente, um caso de racismo. Para chegarmos a uma conclusão desse nível, precisaríamos de informações mais específicas e concretas além de “achei ofensivo” ou “eu não gostei”.

Pode ser estranho, e quem sabe até constrangedor, que alguém não goste da representação estética do cabelo black power ilustrado no boneco. Mas, ainda assim, tal manifestação poderia ser interpretada como um tipo de preferência para estilos de penteado, e não um juízo de valor contra a pele negra. Não existe equivalência entre uma predileção estética e um juízo de valor moral, que pode ser discriminatório ou não. De fato, esta é uma confusão recorrente que, com frequência, cometemos em reflexões apressadas.

Em outro caso, aqueles que aprovam a venda e o uso do boneco não devem ser considerados, automaticamente, racistas. Algumas pessoas poderiam destinar o uso do boneco de forma inofensiva, como decoração ou limpeza (a menos que considerem limpar a casa ou lavar a louça como uma prática desonrosa); outras fariam referências discriminatórias contra o cabelo afro, como se cabelo crespo, mais comum aos negros, fosse ruim, e cabelo liso, mais comum aos brancos, fosse bom. Ocorre, no entanto, que a alegação de “gosto pessoal para cabelos” nem sempre serve de informação para acusar alguém de estar sendo racista ou preconceituoso, caso contrário estaríamos diante de uma espécie de Minority Report: É acusatório na medida em que presume a culpa, e o faz com evidências parcas.
Mas não nego que contexto do boneco afro tem certa relevância para o debate. Só que importa pouco se o tomarmos de forma apressada e persecutória. Observe a seguinte pergunta: É razoável acusar João de racismo só porque ele não sente atração sexual por mulheres negras? A resposta é que precisamos, no mínimo, conceder que não desfrutar de sexo com mulheres negras seja algo que João tem em comum com os racistas. Entretanto, ele não se torna, compulsoriamente, racista por causa disso. Em casos assim, é necessário refletir antes de acusar João de racismo, porque i) não temos acesso aos estados mentais do que ele verdadeiramente sente ou pensa sobre sua atração física por mulheres; ii) se for para falhar em nosso julgamento, é preferível fazê-lo com generosidade interpretativa, e não existe nenhuma generosidade em apontar o dedo contra uma pessoa e acusá-la de ser preconceituosa, quando não temos as evidências capazes de suportar nossas acusações.

Entretanto, existe um cenário mais evidente e consensual de racismo em relação ao boneco: A alegação consciente de que cabelo black power é ruim e só serve para substituir o bombril. Assim, o que está em causa é que o boneco com um penteado black power acaba sendo usado, infelizmente, como um símbolo de racismo e discriminação contra negros, embora ele não tenha sido fabricado com este propósito. Isso porque interpretação de uma coisa não é igual a essa coisa. E se começarmos a impedir que qualquer coisa com interpretação dúbia seja tolhida a preocupação pela isonomia de direitos se perde num vácuo de autoritarismo.

Um cenário menos evidente é reconhecer que racismo nem sempre é intencional. É possível que pessoas sejam racistas e preconceituosas sem sequer perceber, ou sem más intenções. Por exemplo: vê-se com frequência, em dados estatísticos, que os brancos são mais profissionalmente capacitados que os negros; então, ao receber dois currículos idênticos de um candidato branco e um negro, a empresa, com base no que apontam essas estatísticas, resolve contratar o indivíduo branco. É defensável que, nessa situação, haja indícios de racismo não intencional, ou até intencional. Isso nos leva a um problema controverso que vem sendo muito estudado, chamado viés implícito, que significa que os membros de um grupo “oprimido” também são capazes de serem preconceituosos.

Pode ser o caso que tenha sido uma má escolha o uso do boneco em um programa televisivo. O que está em causa aqui é que racismo é um mal objetivo e tratá-lo com hipersensibilidade acusatória é ceder a uma estratégia que extrapola o conceito. É necessário reforçar que possibilidade não é certeza, e é prudente usar um freio quando a dúvida não dá margem segura para estabelecer confiança em certas acusações. Daí podemos concluir: existem poucos dados objetivos para acusar os fabricantes, ou os consumidores dos bonecos afro, de racistas. Também não é possível concluir que quem simpatizou com os bonecos seja racista. Por mais que uma parcela de pessoas de um grupo historicamente oprimido se sinta ofendido com o boneco (houve negros que gostaram), não significa que um apontar de dedo acusando os outros de racismo resolverá o problema.

Autores: Cícero Escobar e Ricardo Silas.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Os melhores filmes que eu vi em 2015

Como de praxe dos últimos anos, divulgo aqui minha lista dos filmes vistos com suas respectivas cotações. Em conjunto, segue a lista dos melhores filmes com estreias comercias em 2015. Neste ano, foram 251 filmes vistos. Isso equivale a cerca da metade do ano passado. Várias razões comutam para esse decréscimo; ainda assim, é uma quantidade razoável para um cinéfilo ainda em formação e para uma pessoa que tem outras obrigações diárias (um doutorado em curso, por exemplo). Segue a lista dos 10 melhores (em ordem crescente de preferência).



10.Mapa para as estrelas (David Cronenberg)

A acidez do Cronenberg ataca os superlativos da megalomania de Hollywood. Muitas de suas estrelas são detentoras de um brilho falso ou moralidade dúbia. Prato cheio para o cineasta.









9. Acima das nuvens (Olivier Assayas)

Assayas consegue extrair o melhor da recorrente apática Kristen Stewart, numa parceia com a ótima Julitte Binoche.








8. Divertida mente (Pete Docter)

Animação que não despreza intelectualmente seu público, não é apenas recheado de personagens "fofinhos" como também nos brinda ótimas reflexões sobre o papel da tristeza como sendo inevitável e até mesmo saudável.








7. 45 (Andrew Haigh)

Tocante e sensível história contada pelo Haigh. É como se o casal do filme (Charlotte Rampling está maravilhosa) conseguisse a proeza hercúlea de condensar todas nossas imperfeições e aspirações que rodam um longo relacionamento amoroso. 









6. Corrente do mal (David Robert Mitchell)

Hábil em usar um som estridente em uma história que, apesar de não original, é sagazmente conduzida. A velha receita de não explicar tudo parece ter sido bem entendida pelo Mitchell.



 5. Branco sai, preto fica (Ardiley Queirós)


Brasília: Só entra quem possui um passaporte exclusivo. Uma ficção distópica que não precisa de estrondosos efeitos especiais para mostrar a força do seu argumento.







 4. Que horas ela volta? (Anna Muylaert)

Embora simples, o conteúdo do filme de Muylaert (até então uma cineasta com filmes medianos e ruins) consegue condensar anos de um pensamento típico da classe média brasileira.









3. Mad Max - a estrada da fúria (George Miller)

Além da diversão com ritmo frenético, fica a mensagem: Que Hollywood tenha aprendido o recado para atualizar a qualidade de seus blockbusters. Ninguém deseja homogeneidade de filmes. Mas se for para escolher, que seja realizado mais produções tipo "Mad Max" do que tipo "Transformers".




2. Últimas conversas (Eduardo Coutinho)

Sensível até o último minuto, o calor humano nas entrevistas do Coutinho deixam uma marca já saudosa na cimatografia nacional. 

1. Carol (Todd Haynes)

Uma tímida obra-prima que nasce das mãos do Haynes. Serve não apenas como um documento histórico, mas também como um manifesto de amor.








Alguns outros filmes dignos de atenção: Amor, plástico e barulho; Coração de ferro; Casa grande; Sicario; Mia Madre; O Expresso do Amanhã; Ex Machina; Vício inerente; Cássia Eller e Ponte dos espiões.

Sobe os filmes nacionais, 2015 também foi um ótimo ano. Embora muitos ainda estão para estrear, e outros eu tenha perdido, não deixa de ser evidente a qualidade dos filmes. E isso fica evidente ao constatar que há 3 filmes nacionais na lista dos meus favoritos. Mas há outras produções dignas de atenção: Depois da Chuva, Amor Plástico e Barulho, Casa Grande e Cássia Eller. Apesar disso, justiça seja feita, algumas produções que não gostei: Ventos de Agosto, O senhor do labirinto e Permanência. Além disso, há inúmeras outras que ainda não pude checar, como:  Entre Abelhas, 
A História da Eternidade, A vida privada dos hipopótamos e A estrada 47. Isso tudo só mostra a diversidade dos filmes produzido nesses últimos anos, como já comentei aqui, aqui e aqui.


E a lista mais divertida é um tanto curta. Selecionei 3 filmes horrorosos deste ano (em ordem crescente de desgosto).

3. Chappie (Neill Blomkamp)

Ao término do filme ficou a pergunta: Será que o Blomkamp vai seguir o trágico caminho dos pequenos gênios que inciam a carreira de maneira maravilhosa (Distrito 9) e depois vai tombando sucessivamente a cada novo filme (Vide o M . Night Shyamalan)? Embora comentam as boas línguas que seu recente filme (A visita) traz de volta o melhor do cineasta -- ainda estou para ver). Triste é que Blomkamp assumirá a direção do novo filme da franquia Alien (por ora suspensa). Ou será sua redenção, ou ganhará o ódio infinito de uma geração de fanboys (o qual me incluo).


2. Cinquenta tons de cinza

Ouvi alguém dizendo outro dia: O único problema do filme é que ele começou.
Como todo filme ruim, há algo de pedagógico nele: O que não fazer com personagens para torná-los tão enfadonhos.


1. O exterminador do futuro - gênesis

Dizem ser uma obra de ficção-científica. Eu ri o filme todo.


Finalmente, segue a lista de todos os filmes vistos em 2015.


* péssimo
** regular
*** bom
**** ótimo
***** obra-prima
______________________________________________________________
1 O caso dos irmãos nave ****
2 Dossiê Jango ****
3 Tim Maia ***
4 Big Hero ***
5 Uma noite no museu 3 **
6 Carnaval No Fogo ***
7 A besta humana *****
8 O corintiano ***
9 Whiplash - em busca da perfeição ***
10 Além das nuvens *****
11 Irma Vep ****
12 Out-Takes from the Life of a Happy Man ****
13 O Âncora: A Lenda de Ron Burgundy **
14 O grande hotel Budapeste ***
15 Amantes eternos ****
16 O passado ****
17 Ida ***
18 Livre ***
19 Amor, plástico e barulho ****
20 O impossível **
21 Eu matei minha mãe **
22 Apenas o fim ***
23 Tudo que Deus criou ***
24 O grande mestre ***
25 9 canções **
26 A teoria de tudo ***
27 O dia em que Dorival encarou a guarda ***
28 A casa elétrica **
29 Birdman - ou a improvável virtude da ignorância ***
30 Procurando Elly *****
31 Rastros de ódio *****
32 No tempo das diligências ****
33 Por um punhado de dólares ***
34 Coração de ferro ****
35 O jogo da imitação ***
36 O homem que matou Facínora *****
37 Eu Não Faço A Menor Ideia Do Que Eu To Fazendo Com A Minha Vida **
38 Europa 51 *****
39 50 tons de cinza *
40 O caso Mattei ***
41 Saw 0.5 **
42 Sobrenatural ***
43 30 anos esta noite *****
44 Sniper Americano ***
45 Depois da chuva ****
46 O nascimento de uma nação ****
47 The Girl and Her Trust  ***
48 The Musketeers of Pig Alley  **
49 Jardim Europa ***
50 Era Uma Vez no Oeste *****
51 Para sempre Alice ***
52 Mapa para as estrelas ****
53 Terra tranquila **
54 A entidade ***
55 A secretária ***
56 Violette ***
57 Um Punhado de Bravos ****
58 O sétimo filho *
59 O Intrépido General Custer ***
60 O ídolo do público ***
61 Heróis esquecidos ***
62 A lista **
63 Aquele querido mês de Agosto ****
64 Contos de Nova York  ***
65 Histórias reais ***
66 Spring Breakers - Garotas Perigosas ****
67 O Amor é Estranho ****
68 Museum Hours ****
69 Caçador **
70 Quarto vazio ***
71 Na hora dos morcegos **
72 Pele de concreto **
73 O corpo ***
74 Branco sai, preto fica *****
75 Eu sei que vou te amar ***
76 O senhor do labirinto **
77 Trash Humpers ***
78 Mar negro ***
79 Onde jaz o teu sorriso? ****
80 A minha avó ****
81 Apenas um dia **
82 Femmes femmes ****
83 Força maior ****
84 Noites brancas no píer ***
85 Amor bandido ****
86 Casa grande ****
87 O olhar invisível **
88 Dragões da violência ***
89 No decurso do tempo ****
90 A música de Gion ****
91 Tokyo Ga ****
92 Ventos de Agosto **
93 A letra escarlate ****
94 Desejos profanos ****
95 Oharu - a vida de uma cortesã *****
96 O estado das coisas ****
97 De volta ao quarto 666 ***
98 O intendente Sansho *****
99 Deste lado da ressureição **
100 Paris, Texas ****
101 Hotel das Américas ***
102 Os amantes crucificados ****
103 O desejo da minha alma ***
104 As Irmãs Brontë ***
105 Rendez-vous ***
106 Mad Max - a estrada da fúria ****
107 Um filme para Nick ****
108 Pina ***
109 O mundo segundo a Monsanto **
110 Outer space ***
111 L`arrivée **
112 Ballet 16 **
113 Nocturne ***
114 Shot - Countershort **
115 Porto das caixas ***
116 Arraial do cabo ***
117 Capitalismo - uma história de amor ***
118 Aruanda ****
119 Garganta profunda *
120 Psicose *****
121 Snuff - Vítimas do prazer ****
122 Permanência ****
123 Singularidades de uma rapariga Loura *****
124 Últimas conversas *****
125 Top girl ou a deformação profissional ****
126 Planeta fantástico ****
127 Bem perto de Buenos Aires ***
128 O lobo atrás da porta *****
129 Almas silenciosas **
130 Os Advogados Contra a Ditadura: Por uma questão de justiça ***
131 Cala a boca, Philip ***
132 Divertida mente ****
133  O Exterminador do Futuro: Gênesis **
134 A máscara de Satã ***
135 A Mulher Que Inventou o Amor ****
136 Lilian M: Relatório Confidencial  ****
137 Longe deste insensato mundo ***
138 Multiple Maniacs ****
139 War of the Satellites  **
140 Noite em chamas ***
141 Fuk Fuk à Brasileira **
142 A caça ****
143 Ana e os lobos ****
144 The playhouse **
145 Ainda estamos aqui ***
146 Trem das sombras ***
147 O que fazemos nas sombras ****
148 Pride ***
149 Até o vento tem medo ***
150 Veneno para as fadas ****
151 Phoenix ****
152 A hora final ****
153 O pagamento final *****
154 Fuga de Los Angeles ***
155 Enigma do poder ***
156 We are the best ***
157 O dia em que a Terra parou ****
158 É proibido fumar **
159 Minhas tardes com Margueritte **
160 Como era verde o meu vale ****
161 O expresso do amanhã ****
162 Bruno **
163 Problemas femininos ***
164 Meu ódio será tua herança ****
165 Corrente do mal ***
166 Memórias de um assassino *****
167 Willow Springs ***
168 Queimada! ****
169 Crônicas de um industrial ****
170 O hospedeiro ***
171 Re-animator ***
172 Tudo Vai Dar Certo ***
173 Hotel Rwanda ***
174 Tierra ***
175 Banho de sange ***
176 Going Clear Scientology and the Prison of Belief ***
177 Ex Machina ***
178 Cães Raivosos ***
179 Facismo ordinário ****
180 Premonição ***
181 O triunfo da vontade ***
182 Terror nas trevas ***
183 Um toque de pecado ****
184 Ser ou não ser ****
185 Assuntina das Américas ***
186 O tenente sedutor ****
187 Que horas ela volta? *****
188 Cássia Eller ****
189 Sicario ****
190 Black Mass ****
191 Missão impossível - nação secreta ***
192 À beira da loucura ***
193 A pele de Vênus ***
194 A memória que me contam ***
195 O que é isso companheiro ***
196 A lista de Schindler ****
197 Proibido! ****
198 O julgamento de Nuremberg ****
199 Perdido em Marte ***
200 Em busca da vida ****
201 Também somos humanos ****
202 A colina escarlate ***
203 Quem matou Rosemary? **
204 Anjo ****
205 A outra ****
206 O beijo amargo ****
207 Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios ****
208 A revolução dos Bichos  ****
209 Desafio do além ****
210 Calafrios ***
211 007 contra Spectre ***
212 Kingsman - serviço secreto ***
213 Clube de compras Dallas ***
214 Édipo Rei ****
215 Os sonhadores ***
216 Paixões que alucinam ****
217 Freaks ***
218 La Maison Ensorcelée  ****
219 La barba rebelde ***
220 Satán se divierte ***
221 Cinderella **
222 La Lune à un mètre ***
223 O homem com a cabeça de borracha ****
224 Vacas ***
225 Fome animal ***
226 Jogos Vorazes: A Esperança - O Final ***
227 Trash - náusea total **
228 A batalha de Argel ****
229 Agonia e Glória ****
230 Ponte dos Espiões ****
231 Eu fui a secretária de Hitler  ***
232 Darth marathon ***
233 The Adventures of Dollie ****
234 One week ***
235 A diary of a teenage girls ***
236 Redentor ***
237 Arquitetura da destruição ***
238 45 ****
239 O eterno judeu **
240 Ninotchka ****
241 Minha noite com ela  *****
242 A Padeira do Bairro ****
243 Chappie **
244 O cheiro da gente ***
245 The Village  ***
246 Quando o dia nasce ***
247 La sapienza ***
248 Carol *****
249 Marché aux boeufs  ***
250 The dancing skeleton ***
251 Mia Madre ****

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Vida extraterrestre e tudo mais

[Originalmente publicado no blog Bule Voador]

A busca por vida no universo é, talvez, um dos melhores exemplos da nossa humildade combinada com curiosidade. Afinal, alguém poderia perguntar: Por qual razão seres conscientes da sua própria existência dedicariam tempo e recurso na investigação de algo que não há garantias de sucesso?

Algumas pessoas fixam-se excessivamente com o compromisso do resultado, esquecendo ou menosprezando o progresso. Ao longo dos anos — motivados pela paixão e atraídos pelo desconhecido –, os cientistas trouxeram à tona informações preciosas do nosso local no cosmos. Tomando os últimos 450 anos, qualquer um que se aventurar a explorar os detalhes destas descobertas ficaria sem fôlego: Coisas que hoje nos parecem banais eram frequentemente entendidas através de especulações que transitavam entre o plausível e a superstição. Quem não lembra da ideia defendia por exploradores de que no final do horizonte do mar haveria uma queda rumo a morte? Não muito tempo atrás achava-se que os canais em Marte teriam sido feitas por uma civilização extraterrestre tecnológica com intuito de irrigar suas plantações. Há três décadas atrás não haviam planetas descobertos que não fossem os do próprio sistema solar. Nosso sistema, pensava-se, era único; não seria concebível imaginar planetas fora da galáxia. Em pouco mais cem anos atrás muitos sequer imaginavam que outras galáxias pudessem existir. Todas essas questões — e suas respostas–, apareceram numa fração diminuta do tempo desde que a vida surgiu na Terra. Colocando as coisas em perspectivas, não deixa de ser espetacular que somos a primeira espécie na Terra — algo como os últimos 15 segundos antes da meia-noite do dia 31 e Dezembro do calendário cósmicos, onde 1° de Janeiro é o nascimento do universo –, com a capacidade de satisfazer as inquietações intelectuais que o próprio universo nos convida a serem perguntadas. Somos uma parte do cosmos que tomou consciência e inteligência o suficiente para perscrutar perguntas até então inéditas na história do planeta.

Algumas dessas informações são úteis para a humanidade toda, não apenas para saciar a curiosidade de mentes inquietas. Foi com a exploração espacial que descobrimos um efeito estufa descontrolado no nosso vizinho mais próximo (Vênus), e que serve de aviso para nossa espécie reforçar os esforços que combatam a degradação ambiental. O advento necessário de novos satélites e telescópios trouxeram tecnologias maravilhosas para todos. Muito do impulso tecnológico de miniaturização de câmeras dos celulares modernos foi possível como uma espécie de coproduto da exploração realizada por nossas agências espaciais. Não seria maravilhoso que mais e mais tecnologia pudesse ser extraída para o nosso conforto que viesse desse tipo de atividade? Muito melhor que a humanidade obtenha benefício das suas ações criativas em detrimento das destrutivas. Guerras também geram tecnologias. Não deixaremos de usá-las por isso; entretanto não deixa de ser um pouco incômodo que há concorrentes produtores de tecnologias defendendo valores mais plurais e producentes– e que estão fazendo o trabalho de maneira mais humana.

O mistério é atualizado conforme as dúvidas da atualidade são outras. E talvez sejam bobas para o estudante do futuro: Há vida no nosso sistema solar? Qual a dificuldade do aparecimento da vida em outros cantos do universo? O que está acontecendo, nesse exato momento, naquela estrela misteriosa a 1500 anos luz de distância da Terra? Uma vez ter identificado vida tecnológica, seria possível algum diálogo? O recado é simples: Nenhuma pergunta é idiota, e não fazê-las é precisamente algo que caracteriza a idiotice.

Muitas vezes, a superstição e o dogmatismo insistem em substituir nossos métodos racionais de investigação. Em doses moderadas, é possível conviver com a superstição, mas não com o dogma. Se estivermos disposto a aceitar cegamente a palavra da autoridade ou alguma mensagem revelada em detrimento da livre investigação acompanha do escrutínio, não podemos garantir que nosso futuro será o de preservação da humanidade. É por isso que uma das razões que motiva a busca por vida extraterrestre é a possibilidade de descobrir um pouco mais sobre nós mesmos.

domingo, 8 de novembro de 2015

Sobre as intervenções ativistas nas universidades

Fonte: iStock Vectors / Getty Images *As frases são de coletivos de universidades brasileiras

[Originalmente publicado no blog Bule Voador]

 Com frequência, temos visto nas universidades atos conhecido como “intervenções”, “performances” ou “problematizações”. Seja em nome de causas feministas ou por questões de gênero, há algo em comum nesses eventos. Apostam em uma espécie de impacto visual para chamar atenção à sua causa: pessoas aparecem nuas dançando ou se banhando em óleo; outras vezes urinam em baldes e ameaçam transeuntes; masturbam-se em público; ecoam gritos contra o patriarcado ou contra imposições de gênero. Causam ao mesmo tempo estranheza e adoração. O que está em jogo é algo defensável: tentar minimizar preconceitos enraizados na sociedade, como o machismo, homofobia, transfobia e racismo. Portanto a questão seguinte merece atenção: as intervenções ativistas vistas nesses locais contribuem de alguma maneira à causa defendida?
     Primeiramente, é necessário reconhecer a necessidade de sensibilizar cognitivamente as pessoas pertencentes do grupo ao qual é desejado persuadir. Se o ativismo praticado é aquele que pressupõe eficácia por adesão numérica de pessoas através de suas performances em detrimento de argumentos, isso implica em desacreditar na possibilidade de chegar a resultados relativamente consensuais usando argumentos com premissas universais (tanto quanto possíveis) nos quais todas as pessoas possam aceitar. Isso não significa minimizar a arte como força revolucionária -- só implica que a qualidade de suas premissas não é proporcional às apresentações esdrúxulas. Ora, se em um argumento dedutivamente válido é considerado cogente (um bom argumento) quando as premissas são verdadeiras e são mais plausíveis que a conclusão, é razoável o paralelo que uma performance ativista pretendendo entregar uma mensagem proposicional (a saber, agir ou pensar de tal forma é moralmente errado) deve ter suas ações pautadas de maneira mais moderada do que a mensagem final desejada (pelo menos para o estado cognitivo do receptor). Em outras palavras, causar estranheza ao seu público alvo não parece uma maneira eficaz de transmitir ideias.
     Para fins ativistas, é razoável defender uma união entre manifestações artística e argumentação dedutiva. O ponto central é: a performance e/ou as premissas dos argumentos deve ser suficientemente convincente para atingir seu público alvo. Um argumento pode ser válido e concomitantemente ruim; da mesma forma, a performance pode alcançar um público numeroso e mostrar-se igualmente ser ruim. E é ruim quando falha precisamente por convencer o receptor da importância do seu ato.
     Que um argumento pode ser logicamente válido e ao mesmo tempo ruim é ponto pacífico para quem tem minimamente um estudo sobre lógica dedutiva. Detenho-me então na seguinte afirmação: independente da extravagância ou moderação visual de sua performance, ela só terá eficácia se o se ato for mais palatável para o destinatário do que para emissor; o último já está convencido da importância da sua finalidade, então é o primeiro que merece maior atenção.
      E como defender a afirmação acima? A resposta precisa contemplar a tese que entende como positiva as manifestações com performances transformadoras, com consequente adesão a determinada causa. Essa é uma tese empírica, e, portanto merece uma investigação igualmente empírica. As evidências alertam para a pouca eficácia da performance agressiva e excêntrica. Inúmeros estudos têm mostrado que incutir alguma mudança efetiva no comportamento moral das pessoas pode ser feita através da exposição interpessoal de cunho afetivo. Por exemplo, a convivência com gays próximos, parentes ou amigos, tem mostrado mais disposição das pessoas em minimizar seus comportamentos homofóbicos. Grosso modo, isso é o que pesquisadores nas áreas de psicologia e sociologia chamam de hipótese do contato – cujos resultados de estudos têm demonstrado que atitudes mais favoráveis a gays podem ser conseguidas quando grupos potencialmente homofóbicos têm experiências positivas com gays. Evidências também mostram melhoria de integração por contato inter-grupos para os casos de muçulmanos na Europa, para pessoas negras e para etnias sociais.
     Não há evidências de que atos com padrão visualmente agressivo, grotesco e/ou excêntrico incentive alguém mudar seu pensamento e comportamento moral. Temos razões para acreditar precisamente o contrário: segundo o estudo da Bashir e colaboradores, é comum pessoas evitarem se afiliar com ativistas por os enxergarem como militantes/agressivas e excêntricas/não-convencionais. Essa tendência de atribuir estereótipos negativos faz com pessoas sintam-se desconfortáveis em aderirem às motivações de mudança que os ativistas advogam. Se a conclusão está correta, a mensagem é cristalina: pessoas depositam estereótipos fortemente negativos sobre ativistas, e esses sentimentos reduzem sua vontade de apoiar aquilo pretendido por eles. Isso não sugere que tudo está perdido nas causas ativistas. Esse mesmo artigo sugere que pessoas foram mais motivadas a adotar comportamentos alinhados aos ativistas quando eles demonstram menos aspereza. Ainda nas palavras da autora, "convertidos" em potencial para a sua causa "podem ser mais receptivos a ativistas que desafiam os estereótipos ao se mostrarem como agradáveis e amigáveis". Outra forma de sensibilizar seu público-alvo é expor argumentos e evidências científicas sobre o assunto em causa.
     A resistência individual para a mudança social é mais difícil do que parece supor os ativistas performativos: um estudo projetado para medir a minimização de estereótipos e preconceitos em proporções populacionais falhou em diminuir os níveis de antagonismos após a implementação de um programa com acompanhamento; embora nos primeiros dias após a intervenção os níveis de preconceito medido tenham diminuído, após 3 meses voltou às condições iniciais. E embora as políticas de intervenções de redução de intolerância abundem, tem-se visto que, ironicamente, o efeito final possa resultar em exatamente o contrário do inicialmente pretendido. Nesse sentido, promoção da autonomia regulada de preconceitos (ou seja, encorajamento pessoal do valor da diversidade e autonomia) parece ser mais eficiente do que apenas pressão social (como linguagem agressiva) pura e simplesmente.
     Manifestantes dos atos de performances vangloriam-se que estão "causando", e assim acreditam que terão mais pessoas adeptas à sua causa. Entretanto acreditar nisso esbarra em um efeito limitante: só os iniciados comprarão a ideia -- talvez funcione para pessoas que não tinham encontrado ainda um terreno confortável para se manifestar, e enxergam nesses atos uma espécie de libertação epistêmica. Por outro lado, há algo de pernicioso e equivocado nessas ações. Elas parecem estar preocupadas mais com contagem de auditório do que qualidade de argumentos. Parece estar implícito que chocar pessoas com imagens pouco convencionais daquilo que se espera do cotidiano tenha alguma força, se não argumentativa, pelo menos de adesão à causa -- fomentando assim a reflexão futura. Tendo em vista a literatura recente, estas tentativas de promoção de igualdade não tenderão a gerar bons frutos.
     É importante reconhecer a potencialidade das ciências sociais em discutir publicamente a minimização de preconceitos. Em tese, essa é uma das tarefas da academia. A pergunta é: as pessoas ativistas estão sendo atualizadas com dados empíricos sobre o que tem sido feito em pesquisas que envolvem a percepção social sobre grupos minoritários? E mais, estão atualizadas sobre as evidências empíricas de vieses implícitos, e sobre o reforço de estereótipo negativo em manifestações de ativistas? A julgar pelas performances surgindo nas universidades a resposta é não.