quinta-feira, 24 de julho de 2014

Karl Popper e o falsificacionismo



               Texto também publicado no blog da Liga Humanista Secular (LiHS) - Bule Voador
"Um milhão de experiências bem sucedidas não podem provar que uma teoria está correta, mas uma experiência fracassada pode provar que uma teoria está errada." Talvez você já tenha ouvido alguém usar esse clichê para descrever o método científico como uma busca teimosa e sentimental de uma compreensão exata da natureza. Esse sentimento tem suas raízes remontando as considerações sobre a investigação científica feitas por Karl Popper, na metade século XX,  que foram chamadas de "falsificacionismo" - por isso, talvez, - não seja surpresa que as opiniões de Popper têm sido populares entre muitos proponentes da ciência. Infelizmente, se quisermos levar o clichê literalmente, e na forma como pretendida por Popper,  a tese central do falsificacionismo acaba por ser falsa. Embora algo da atitude implícita no clichê possa permanecer, o ponto original de Popper sobre a estrutura lógica da descoberta científica tem dificuldade em resistir ao escrutínio.
Em uma série de obras famosas iniciadas no final de 1950, Popper criticou alguns (supostos) campos de estudo científicos como insuficientemente rigorosos. Parecia-lhe que alguns pesquisadores se concentraram apenas em encontrar evidências positivas que poderiam ser usadas para confirmar suas teorias favoritas ao invés de realmente desafiá-las, tentando encontrar provas contra essas teorias. Por exemplo, os psicólogos freudianos frequentemente alegaram sucesso científico depois de mostrar que a teoria freudiana foi capaz de explicar uma ampla gama de comportamentos humanos propostos. No entanto, como Popper apontou, devemos desconfiar desse suposto sucesso depois de reconhecer que a teoria é tão vaga e maleável que pode ser traiçoeira o suficiente para explicar qualquer comportamento humano concebível.
Popper rotulou essas teorias de "infalsificáveis" e argumentou que uma teoria propriamente científica deve nos dizer o que não deve acontecer. Se repetidas tentativas de encontrar fenômenos proibidos pela teoria falham, então, e só então, a teoria teria passado por um teste realmente arriscado e ganho algum mérito científico. A teoria freudiana não foi capaz de submeter-se a esse tipo de teste, e por isso era impossível de rejeitá-la, tornando-a, assim, não-científica de acordo com Popper.
As perspesctivas de Popper sobre a ciência foram guiadas por sua preferência pela lógica formal. Usar exemplos particulares de evidência positiva para apoiar uma conclusão geral - ou seja, partindo do do particular para o geral -, requer o uso de lógica indutiva. Infelizmente, há muito tempo tem sido consiredado que a indução não pode provar conclusivamente uma declaração geral sobre a natureza. Por outro lado, no entanto, quando usamos evidência negativa para contradizer uma afirmação geral, ou seja, quando a falsificamos, estamos usando a lógica dedutiva, e, ao contrário da indução, a dedução pode fornecer provas conclusivas. Assim chegamos ao clichê citado no início do ensaio.
Popper compreendeu que para o falsificacionismo ser um relato preciso do raciocínio científico, deveria descrever a prática científica real. Com isso em mente, Popper escolheu a famosa experiência de Eddington realizada em 1919, em que a luz de uma estrela foi observada seguindo uma trajetória curva em torno do sol. Por um tempo considerável, a teoria de Newton da física ditava a afirmação geral de que a luz nunca segue um caminho curvo através do vácuo, mas esse exato fenômeno foi observado. De acordo com Popper, a observação era suficiente para falsificar teoria newtoniana, permitindo que a relatividade geral de Einstein tomar seu lugar.
Se a descrição de Popper de raciocínio científico fosse correta, então o episódio de 1919 seria de fato poderoso apoio para falsificacionismo. No entanto, verifica-se que a descrição de Popper não capturou totalmente a prática científica. Ao invés de rejeitar a teoria newtoniana pura e simplesmente, a comunidade científica defendeu sua teoria mais antiga conhecida e bem-sucedida. Sugeriu-se que, devido às suas capacidades de medição limitada, à época, era perfeitamente possível que a corona do sol estendia-se para fora o suficiente para refratar a luz solar. Não foi antes de um trabalho cuidadoso e confiável continuasse a apioar Einsten em detrimento de Newton que a comunidade científica  gradualmente transferiu seu apoio à relatividade geral. Em defesa de Popper, pode-se afirmar que os newtonianos estavam apenas sendo teimosos, e que, se eles tivessem seguido a lógica científica adequada, teriam rejeitado a sua teoria antiga e parariam de tentar encontrar formas forçasas para defendê-la. Para ver por que isso é uma caracterização equivocada, vejamos mais alguns exemplos de práticas científicas inquestionavelmente boas e outras inquestionavelmente ruins.
Suponha que um aluno de da disciplina de Química está conduzindo uma prática laboratorial na qual o líquido em um tubo de ensaio deve tornar-se azul. Em vez disso, o líquido fica verde e o aluno, seguindo o raciocínio de Popper, afirma ter falsificado a teoria atual da química. Isso, obviamente, é má ciência, porque a conclusão é muito precipitada. A explicação mais razoável é que o experimentador fez algo errado. E isso não é apenas verdade para iniciantes. Depois de colocar o Grande Colisor de Partículas em pleno funcionamento pela primeira vez, os cientistas do CERN conseguiram encontrar o bóson de Higgs. Se eles seguissem Popper, teríam concluído que o modelo padrão da mecânica quântica era falso e encerrariam a investigação. Mais uma vez, teria sido uma conclusão  demasiadamente apressada. Em vez disso, eles decidiram continuar procurando até que já não poderiam  atribuir o fracasso da pesquisa a problemas com seus métodos ou equipamentos, e seus esforços eventualmente foram retribuídos em grande estilo.
O principal problema da tese de Popper é que o seu processo dedutivo de falsificacionismo nunca pode fornecer uma refutação clara de uma teoria. Há sempre a possibilidade de que a teoria esteja correta e que algum outro detalhe da experiência foi responsável pelo resultado negativo. Ele pode ter estado certo em insistir que as teorias científicas devem ser submetidas a testes de rigorosos, mas Popper foi longe demais ao insistir que a prática da ciência é um processo dedutivo de eliminação. Talvez, então , o clichê citado no início deste ensaio deva ser alterado para dizer: "Um milhão de experiências bem sucedidas não podem provar uma teoria correta, mas uma experiência fracassada pode provar que tanto a teoria está errada ou que algum erro foi cometido no procedimento experimental ou algo totalmente inesperado aconteceu." Essa é uma maneira muito mais bagunçada e confusa para descrever o processo científico, mas a própria natureza é bagunçada e confusa. Assim, talvez não devaemos esperar que a nossa investigação sobre a natureza resulte em algo muito diferente.

Referências
Duhem, Pierre. The Aim and Structure of Physical Theory, translated by Philip Wiener, Princeton University Press, 1954.
Kuhn, Thomas. The Structure of Scientific Revolutions, 3rd edition, Chicago: University of Chicago Press, 1970.
Hansson, Sven Ove. “Falsificationism Falsified”, Foundations of Science, 11: 275–286, 2006.
Popper, Karl. Logik der Forschung, Vienna: Julius Springer Verlag, 1935.
Popper, Karl. Conjectures and Refutations: The Growth of Scientific Knowledge, London: Routledge, 1963.


Autor: Michael Zerella, publicado na página 1000-word philosophy

Leitura Complementar

Série de textos Ciência e Inferência: parte I, parte II, parte III e parte IV



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