[Originalmente postado no blog Bule Voador]
Em filosofia, a epistemologia (teoria do
 conhecimento) dedica-se a estudar questões do tipo: qual a origem do 
conhecimento? Qual relação entre conhecimento e certeza, e entre o 
conhecimento e a impossibilidade do erro? Qual o papel da experiência e 
da razão na geração do conhecimento?
    É necessário, primeiro, determinar o 
significado de conhecimento. Como todo o conhecimento é uma relação 
entre um agente e um objeto, diferentes tipos de conhecimentos são 
concebíveis. Se alguém alega saber andar de bicicleta, nadar, ou 
preparar uma deliciosa sobremesa é porque esta pessoa tem o conhecimento
 de como efetuar uma ação. É um saber-fazer — sendo este o nome dado a 
este tipo específico de conhecimento prático. Outro tipo: Posso 
manifestar minha experiência direta com pessoas famosas, ou locais 
famosos. Se alguém diz que mora em Paris há anos, então é provável que 
esta pessoa conheça bem a cidade. A este tipo damos o nome de 
conhecimento por contato.
    Um terceiro tipo — de maior interesse 
para a filosofia –, é o conhecimento proposicional. Nesse caso, estamos 
interessados em uma proposição: uma pessoa pode afirmar saber que Paris é
 a capital da França, sem ser necessário que a tenha visitado. 
Tradicionalmente, a maneira de abordar conhecimento proposicional é 
tentar encontrar condições necessárias e suficientes que possam 
defini-lo. Embora os filósofos ainda discordem (veja o problema de Gettier),
 uma tentativa de entender conhecimento proposicional é estabelecê-lo 
como sendo uma crença verdadeira e justificada (convenientemente chamada
 de definição tripartida). Explorar detalhes desta definição está além 
do objetivo do presente texto, mas é necessário ter em mente o seguinte:
 a investigação do conhecimento proposicional (como a alegação de uma 
pessoa que supostamente diz uma verdade) independe de características 
intrínsecas do receptor. Dito de outro modo: o acesso à informação (ou 
conhecimento, se esta informação for verdadeira e justificada), pode ser
 igualmente perscrutado por qualquer ser humano, não importando sua cor 
de pele, orientação sexual, identidade de gênero, opção religiosa, etc.
    À luz da teoria do conhecimento, é 
possível existir algum sentido nos excessos (aparentemente banalizados) 
os quais têm proclamado “protagonismo e local de fala do oprimido”? Em 
certo sentido sim: caso alguém limite o acesso ao conhecimento humano 
somente através do conhecimento por contato e saber-fazer. Sobretudo o 
primeiro, poderia ser mais ou menos equivalente ao que é alegado de 
“vivência do oprimido”. Algumas vertentes são ainda mais pontuais: Só a 
mulher pode combater o machismo, porque só ela sabe o que é sofrer na 
sociedade patriarcal; só o homossexual pode lidar com a opressão contra 
os gays, pois só eles sabem o que é viver na pele a homofobia. 
Resumindo, o protagonismo é do oprimido.
 Uma consequência disso, muitas vezes, é apelar para alguma espécie de 
privilégio epistêmico. Ou seja, que grupos oprimidos teriam acesso 
privilegiado da verdade (no caso, a verdade seria o acesso à informação 
da opressão). Entretanto, há algo de filosoficamente pueril defender que
 o conhecimento só pode ser alcançado por experiências de contato. Como 
já assinalou a filósofa Susan Haack, as teses baseadas na ideia que a 
opressão fornece privilégio epistêmico ao oprimido são implausíveis. Se 
estivessem certas, os grupos mais desfavorecidos resultariam nos 
melhores cientistas; talvez o contrário: os oprimidos e socialmente 
marginalizados muitas vezes têm pouco acesso à informação e educação 
para lhe garantirem destaque em ciência, dessa forma os levando a uma 
situação de “desvantagem epistêmica”.
    A experiência humana, entretanto, é 
muito mais complexa. Resumir o mundo entre opressores e oprimidos, 
conhecedores e não conhecedores (por contato), é falhar em reconhecer 
que conhecimento proposicional tem um potencial papel relevante no que 
diz respeito a investigações de verdades no mundo, e que não pode ser 
desprezado. Ignorar conhecimento proposicional pode dar margem a acusações falaciosas
 como aquele que julga toda a violência contra a mulher tendo origem na 
sociedade patriarcal: tem sido evidenciado que, em determinadas 
condições de relacionamentos, mulheres podem ser igualmente ou mais
 violentas que os homens. É irrelevante que quem alegou isso foi uma 
mulher ou um homem branco cissexual. O que está sendo mostrado nestes 
estudos é algo pretendido a ser como conhecimento proposicional, e, 
portanto o escrutínio cabe focando-se na metodologia da pesquisa, e não 
sobre o sexo do pesquisador. Fechar os olhos para o conhecimento 
proposicional pode correr o risco de alimentar um ativismo mal 
informado: mais de décadas de acúmulo de evidencias
 em psicologia apontam que pessoas, independentemente de seus grupos, 
guardam em média vieses contra seus próprios grupos. São vieses 
implícitos que podem (em maior ou menor grau) fazer com que homossexuais
 sejam homofóbicos, ou mulheres machistas. O que todas estas pesquisas 
têm mostrado é que preconceito é um aspecto da vida mental e sendo assim
 pode ser objetivamente estudado. Trocar conhecimento proposicional por 
“vivência” é endossar alguma espécie de irracionalismo, ou até mesmo 
subjetivismo da pior espécie.
    Parece razoável que um homem 
heterossexual não sofra homofobia, mas não é razoável defender uma tese 
no sentido de impossibilitar este homem de conhecer (no sentido 
proposicional) que a homofobia existe, é algo ruim e deve ser combatida.
 O que parece estar em causa é: o conhecimento por contato (no sentido 
de “vivência”) pode ser uma condição facilitadora, mas não é uma 
condição necessária (nem suficiente) para reconhecer mecanismos de 
opressão na sociedade. Somando-se a isso, se alguém está interessado em 
resolver injustiças sociais por meios éticos, sugerir alternativas 
racionais para saná-las parece exigir muito mais conhecimento 
proposicional sobre o mundo do que conhecimento por contato. E este 
conhecimento não deriva apenas das ciências empíricas. A própria 
reflexão ética é baseada por proposições, sem necessidade de depender 
única e exclusivamente de locais de falas da vivência do oprimido. 
Ativismo maduro — eticamente engajado e cientificamente informado –, é 
muito antes checar os fatos (ou proposições) do que checar os 
privilégios (ou suas vivências).

