domingo, 11 de outubro de 2015

Local de fala, protagonismo e privilégio à luz da epistemologia



[Originalmente postado no blog Bule Voador]
Em filosofia, a epistemologia (teoria do conhecimento) dedica-se a estudar questões do tipo: qual a origem do conhecimento? Qual relação entre conhecimento e certeza, e entre o conhecimento e a impossibilidade do erro? Qual o papel da experiência e da razão na geração do conhecimento?
    É necessário, primeiro, determinar o significado de conhecimento. Como todo o conhecimento é uma relação entre um agente e um objeto, diferentes tipos de conhecimentos são concebíveis. Se alguém alega saber andar de bicicleta, nadar, ou preparar uma deliciosa sobremesa é porque esta pessoa tem o conhecimento de como efetuar uma ação. É um saber-fazer — sendo este o nome dado a este tipo específico de conhecimento prático. Outro tipo: Posso manifestar minha experiência direta com pessoas famosas, ou locais famosos. Se alguém diz que mora em Paris há anos, então é provável que esta pessoa conheça bem a cidade. A este tipo damos o nome de conhecimento por contato.
    Um terceiro tipo — de maior interesse para a filosofia –, é o conhecimento proposicional. Nesse caso, estamos interessados em uma proposição: uma pessoa pode afirmar saber que Paris é a capital da França, sem ser necessário que a tenha visitado. Tradicionalmente, a maneira de abordar conhecimento proposicional é tentar encontrar condições necessárias e suficientes que possam defini-lo. Embora os filósofos ainda discordem (veja o problema de Gettier), uma tentativa de entender conhecimento proposicional é estabelecê-lo como sendo uma crença verdadeira e justificada (convenientemente chamada de definição tripartida). Explorar detalhes desta definição está além do objetivo do presente texto, mas é necessário ter em mente o seguinte: a investigação do conhecimento proposicional (como a alegação de uma pessoa que supostamente diz uma verdade) independe de características intrínsecas do receptor. Dito de outro modo: o acesso à informação (ou conhecimento, se esta informação for verdadeira e justificada), pode ser igualmente perscrutado por qualquer ser humano, não importando sua cor de pele, orientação sexual, identidade de gênero, opção religiosa, etc.
    À luz da teoria do conhecimento, é possível existir algum sentido nos excessos (aparentemente banalizados) os quais têm proclamado “protagonismo e local de fala do oprimido”? Em certo sentido sim: caso alguém limite o acesso ao conhecimento humano somente através do conhecimento por contato e saber-fazer. Sobretudo o primeiro, poderia ser mais ou menos equivalente ao que é alegado de “vivência do oprimido”. Algumas vertentes são ainda mais pontuais: Só a mulher pode combater o machismo, porque só ela sabe o que é sofrer na sociedade patriarcal; só o homossexual pode lidar com a opressão contra os gays, pois só eles sabem o que é viver na pele a homofobia. Resumindo, o protagonismo é do oprimido. Uma consequência disso, muitas vezes, é apelar para alguma espécie de privilégio epistêmico. Ou seja, que grupos oprimidos teriam acesso privilegiado da verdade (no caso, a verdade seria o acesso à informação da opressão). Entretanto, há algo de filosoficamente pueril defender que o conhecimento só pode ser alcançado por experiências de contato. Como já assinalou a filósofa Susan Haack, as teses baseadas na ideia que a opressão fornece privilégio epistêmico ao oprimido são implausíveis. Se estivessem certas, os grupos mais desfavorecidos resultariam nos melhores cientistas; talvez o contrário: os oprimidos e socialmente marginalizados muitas vezes têm pouco acesso à informação e educação para lhe garantirem destaque em ciência, dessa forma os levando a uma situação de “desvantagem epistêmica”.
    A experiência humana, entretanto, é muito mais complexa. Resumir o mundo entre opressores e oprimidos, conhecedores e não conhecedores (por contato), é falhar em reconhecer que conhecimento proposicional tem um potencial papel relevante no que diz respeito a investigações de verdades no mundo, e que não pode ser desprezado. Ignorar conhecimento proposicional pode dar margem a acusações falaciosas como aquele que julga toda a violência contra a mulher tendo origem na sociedade patriarcal: tem sido evidenciado que, em determinadas condições de relacionamentos, mulheres podem ser igualmente ou mais violentas que os homens. É irrelevante que quem alegou isso foi uma mulher ou um homem branco cissexual. O que está sendo mostrado nestes estudos é algo pretendido a ser como conhecimento proposicional, e, portanto o escrutínio cabe focando-se na metodologia da pesquisa, e não sobre o sexo do pesquisador. Fechar os olhos para o conhecimento proposicional pode correr o risco de alimentar um ativismo mal informado: mais de décadas de acúmulo de evidencias em psicologia apontam que pessoas, independentemente de seus grupos, guardam em média vieses contra seus próprios grupos. São vieses implícitos que podem (em maior ou menor grau) fazer com que homossexuais sejam homofóbicos, ou mulheres machistas. O que todas estas pesquisas têm mostrado é que preconceito é um aspecto da vida mental e sendo assim pode ser objetivamente estudado. Trocar conhecimento proposicional por “vivência” é endossar alguma espécie de irracionalismo, ou até mesmo subjetivismo da pior espécie.
    Parece razoável que um homem heterossexual não sofra homofobia, mas não é razoável defender uma tese no sentido de impossibilitar este homem de conhecer (no sentido proposicional) que a homofobia existe, é algo ruim e deve ser combatida. O que parece estar em causa é: o conhecimento por contato (no sentido de “vivência”) pode ser uma condição facilitadora, mas não é uma condição necessária (nem suficiente) para reconhecer mecanismos de opressão na sociedade. Somando-se a isso, se alguém está interessado em resolver injustiças sociais por meios éticos, sugerir alternativas racionais para saná-las parece exigir muito mais conhecimento proposicional sobre o mundo do que conhecimento por contato. E este conhecimento não deriva apenas das ciências empíricas. A própria reflexão ética é baseada por proposições, sem necessidade de depender única e exclusivamente de locais de falas da vivência do oprimido. Ativismo maduro — eticamente engajado e cientificamente informado –, é muito antes checar os fatos (ou proposições) do que checar os privilégios (ou suas vivências).

Uso de maconha por adolescente: Recente estudo sugere que o consumo não está ligado a depressão, câncer e nem sintomas psicóticos

Uso de maconha por adolescente: Recente estudo sugere que o consumo não está ligado a depressão, câncer e nem sintomas psicóticos
 [Originalmente postado no blog Bule Voador]
O uso crônico de maconha por adolescentes não parece estar ligado a questões posteriores de saúde física ou mental, como depressão, sintomas psicóticos ou asma. Esta foi a conclusão de um recente estudo publicado pela American Psychological Association.
Pesquisadores da Universidade de Pittsburgh Medical Center e da Universidade Rutgers acompanharam 408 homens a partir da adolescência até seus 30 e poucos anos.
“O que descobrimos foi um pouco surpreendente”, disse o pesquisador Jordan Bechtold, pesquisador de psicologia da Universidade de Pittsburgh Medical Center. “Não houveram diferenças nos resultados de saúde mental ou física que nós medidos, independentemente da quantidade ou frequência de maconha usada durante a adolescência.”
O uso de maconha foi submetido a um intenso escrutínio depois de vários estados nos EUA legalizarem a droga, o que levou os pesquisadores a examinarem se o uso de maconha entre adolescentes têm consequências para a saúde a longo prazo. Com base em alguns estudos anteriores, eles esperavam encontrar uma ligação entre o uso de maconha entre adolescentes e o posterior desenvolvimento de sintomas psicóticos (delírios, alucinações, etc.), câncer, asma ou problemas respiratórios, mas nenhuma foi encontrada. O estudo também não encontrou nenhuma ligação entre o uso de maconha entre adolescentes e depressão, ansiedade, alergias, dores de cabeça ou pressão arterial elevada. Este estudo é um dos poucos sobre os efeitos da saúde a longo prazo do uso de maconha entre adolescentes que têm monitorado centenas de participantes de mais de duas décadas de suas vidas, disse Bechtold.
A pesquisa foi um desdobramento do Estudo da Juventude de Pittsburgh, que começou a acompanhar desde os 14 anos de idade estudantes do sexo masculino de escolas públicas e Pittsburgh no final de 1980 para analisar várias questões de saúde e sociais. Durante 12 anos, os participantes foram examinados anualmente ou semestralmente, e uma pesquisa seguinte foi realizada com 408 participantes em 2009-10 quando eles tinham 36 anos de idade. A amostra do estudo foi de 54% de negros, 42% de branco e 4% de outras raças ou etnias. Não houve diferenças nos resultados com base em raça ou etnia.
Os participantes foram divididos em quatro grupos com base no seu uso de maconha relatada: baixo ou não-usuários (46%); usuários crônicos (22%); participantes que só fumaram maconha durante a adolescência (11%); e aqueles que começaram a usar maconha mais tarde, em seus anos de adolescência e continuara usando a droga (21%). Usuários crônicos relataram um consumo muito maior de maconha, o que aumentou rapidamente durante a adolescência para um pico de mais de 200 dias por ano, em média, quando eram 22 anos de idade. Entretanto, o consumo relatado diminuía à medida que envelheceram.
Os pesquisadores controlaram outros fatores que podem ter influencia nos resultados, incluindo tabagismo, uso de outras drogas ilícitas, e acesso dos participantes ao seguro de saúde. Uma vez que o estudo incluiu apenas homens, não houve resultados ou conclusões sobre as mulheres. Relativamente poucos participantes tinham sintomas psicóticos, de acordo com o estudo.
“Queríamos ajudar a informar o debate sobre a legalização da maconha, mas é uma questão muito complicada e um estudo não deve ser tomada de forma isolada”, disse Bechtold.
———–
Tradução: Cicero Escobar