Texto originalmente publicado no blog oficial da Liga Humanista do Brasil (Bule Voador)
“O sentimento vingativo que se denomina indignação moral não passa de uma forma de crueldade (…) pensar o criminoso como objeto de execração é totalmente irracional.”
Bertrand Russel
“O sentimento vingativo que se denomina indignação moral não passa de uma forma de crueldade (…) pensar o criminoso como objeto de execração é totalmente irracional.”
Bertrand Russel
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Não parece por acaso que dentre os
países com os melhores indicadores sociais encontram-se aqueles que mais
zelam por liberdades individuais. Estudos nas áreas sociais têm
apontado que as nações com maiores expectativas de vida, melhores níveis
de alfabetização, educação e renda, são mais sensíveis a provocarem
sentimento de autorrealização, e portanto felicidade [1]. E que as
diferenças de personalidades entre homens e mulheres são maiores e mais
robustas nos países mais prósperos e igualitários [2]. Por exemplo, é
notório que a legalização do casamento gay é uma característica destes
países, ou, no mínimo, é uma tendência que estes países estejam
dispostos a debater e rever suas posições sobre o assunto (vide o
referendo sobre o casamento homossexual recentemente na Irlanda).
Acontece que para atingir este reconhecimento em qualidade de vida é
necessário, ou no mínimo facilitador, que estas sociedades sejam
comprometidas com Direitos Humanos.
E não é o caso que não se tente aqui no
Brasil. De fato, há tentativas governamentais e não governamentais que
lutam em prol de uma sociedade melhor, pautada por respeito aos direitos
humanos. Infelizmente, e aqui a situação começa a se agravar, falar
sobre direitos universalizantes no Brasil parece, para muitos, a se
resumir em frases preguiçosas e mal informadas do tipo “defesa para
bandido” ou “direitos humanos para humanos direitos”. Parte desta
tentativa apressada e seletiva no que diz respeito a defesa de direitos
básicos parece ser advinda da mal compreensão do que significa defender
direitos universalizantes.
Grosso modo, direitos humanos são
direitos que atribuímos uns aos outros independentemente de acordos
pessoais e de determinações legais, ou seja, é entender que estes
direitos não dependem de nacionalidade, classe social, etnia ou da
vontade da maioria. São, antes de tudo, direitos morais no sentido de
garantir a satisfação de condições mínimas para a realização de uma vida
digna, e que consideram que qualquer indivíduo possa satisfazer suas
necessidades básicas (como alimentação e assistência médica básica). É
por isso que cercear a liberdade de um criminoso não implica em ter de
deixá-lo em condições miseráveis correndo risco de morte em um cárcere.
Reconhecer direitos humanos não significa defender a tese que criminosos
não devem ser punidos; por outro lado, não defende-se a punição de um
crime por tráfico de drogas com a morte do indivíduo. E que “justiça”
feita com a próprias mãos pode ser qualquer coisa (vingança,
provavelmente), menos justiça. Entre outras coisas, também a declaração
mais recente dos direitos humanos foi criada como uma reação a uma das
maiores barbáries em toda a História, na qual mais de 45 milhões de
pessoas foram mortas em conflitos envolvendo regimes totalitários. O
lado mais assustador disso é que boa parte das mortes não se deu no
campo de batalhas, mas foram mortas por seus próprios Estados que lhe
tiraram as condição de sujeitos de direitos. É nesse sentido que
garantir direitos humanos também é fornecer um mecanismo de prevenção
contra um eventual poder excessivo do Estado.
É sintomático que parte do público que
desconhece minimamente o que é direitos humanos inclua as pessoas
dispostas a relativizar qualquer assunto que envolva temas sobre a
moral, e não raro são as mesmas que desprezam a argumentação às suas
ideias, contentando-se simplesmente a manifestar um relativismo moral
raso e/ou discursos de ódio. Entretanto, e há boas razões para afirmar
isso, o relativismo cultural é incompatível com a tese de direitos
humanos universalizantes [3]. Um problema similar, com causas no
desconhecimento do assunto, acontece com as frases que colocam a falsa
dialética “direitos humanos para bandidos ou para a vítima?”. Conforme já discutido
em outro momento, a questão aqui não é de mérito (tampouco de
conquista), mas de direito, e que endossar esse tipo de dilema é apenas
contribuir para um debate mal informado e pautado na ânsia de satisfazer
seus próprios instintos destrutivos.
O apelo a maioria é um ponto crucial
quando falamos em direitos universais. É irrelevante se a maioria é
contra a permissão da mulher decidir interromper uma gravidez; não é
relevante que a maioria de uma população seja contra a mutilação de
genitálias em mulheres para que isso seja combatido; é desnecessário
exigir que políticas de casamentos civis do mesmo sexo tenham a
aprovação da maioria. No momento que há disposição em aderir a teses
universais, não é a maioria quem decide estas questões. Decisões deste
tipo devem ser pautadas por reflexões éticas e evidências empíricas [4].
São considerações deste tipo que devem anteceder a aprovação de uma
lei, e não a aprovação de uma lei que define o que é ou não ético.
Ampliar direitos de minorias sociais é
tornar um mundo melhor, e isso não tira direitos de quem já os possui. E
num país onde boa parte da população é mal informada sobre assuntos de
ética e direitos universalizantes, é um indicativo que muito ainda temos
para divulgar e estudar sobre estes assuntos.
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Notas
1. Há várias definições possíveis para o
termo “indicadores sociais”. Para o meu propósito, refiro-me a alguns
dados empíricos que são facilmente acessíveis de diversos países. Por
exemplo, o portal da OECD (Organisation for Economic Co-operation and
Development ) fornece uma interessante ferramenta na qual é possível
visualizar e comparar alguns dos fatores centrais – tais como
escolaridade, moradia, meio ambiente, etc (acesse aqui,
em português). Ao simular o efeito da diferença de gêneros sobre alguns
quesitos (em máxima importância), como renda, educação, trabalho e
satisfação pessoal, nota-se que o México, Turquia e o Brasil não apenas
apresentam os mais baixos valores para os quesitos simulados como também
as maiores diferenças entre homens e mulheres. Países como Dinamarca,
Suécia, Estados Unidos e Suíça apresentam os melhores valores dos
quesitos, e também as menores diferenças nos valores dos índices
comparando homens e mulheres.
Aqui, eu entendo o termo “liberdade
individual” como garantias civis para que um indivíduo possa ter livre
expressão de gênero sexual, confissão de crença e de expressão. Países
que impedem algumas dessas garantias são, geralmente, os que apresentam
os piores índices sociais. Assim, é importante reconhecer que
desenvolvimento econômico (e liberdade econômica) é uma condição necessária mas não suficiente para o progresso social.
2. Costa, P.T. Jr.; Terracciano, A.; McCrae, R.R. (2001). “Gender Differences in Personality Traits Across Cultures: Robust and Surprising Findings“. Journal of Personality and Social Psychology 81 (2): 322–331. doi:10.1037/0022-3514.81.2.322. PMID 11519935.
4. Nos últimos anos, alguns autores contaminados em alguma medida pelo cientificismo
têm lançados livros que defendem a tese que a ciência sozinha pode dar
conta de determinar quais são os valores humanos dignos de atenção. Em
outras palavras, que não há muito espaço para reflexões filosóficas
(Vide Sam Harris e Michael Shermer, nos livros A paisagem Moral e The
Moral Arc: How Science and Reason Lead Humanity toward Truth, Justice,
and Freedom, respectivamente). O que é curioso, já que qualquer reflexão
ética é por natureza uma exercício filosófico. O que está em causa é o
seguinte: Dados empíricos são relevantes mas não determinam uma resposta
única. Tanto a ciência e filosofia precisam operar em conjunto. Em
alguns casos, a ciência é muito mais descritiva do que normativa. Não
precisamos entender profundamente de neurociência para defender a tese
que a mutilação genital é eticamente condenável. No vídeo,
quando Michael Shermer tropeçava em conceitos básicos, Massimo
Pigliucci foi claro em defender o que está em jogo na confusão
cientificista destes autores.