domingo, 4 de novembro de 2012

Em defesa do direito do aborto



Micrografia eletrônica de varredura de um blastocisto de seis dias.

Antes de discorrer sobre alguns pontos específicos é necessária uma observação prévia. Penso que o ideal é que não houvesse o aborto. Ele deve ser a decisão última da mulher. O ideal seria que em frente a um imprevisto a mulher tivesse suporte afetivo e material para lidar com uma gestação. Entretanto isto está longe de ser uma realidade. Portanto, talvez o que mais me preocupa neste tema é a LIBERDADE de opção da mulher, que não pode ser tolhida em nome de um absolutismo moral. Logo, não creio que o aborto seja a primeira opção da mulher. É uma decisão difícil, mas é um julgamento final que cabe somente a ela. Atualmente a prática é vista como crime, e além de correr o risco de pegar sentença na cadeia, ela está se submetendo a um procedimento de risco em uma clínica clandestina.
Salvo em algum momento que eu indique o contrário, durante o texto sempre que eu utilizar o termo "aborto" a referência estará relacionado ao ato da interrupção da gestação até aproximadamente oito ou dez semanas de gestação. Não tive acesso aos dados de em que momento da gravidez a mulher comete um aborto, então não incluo os números de aborto praticados no país. É necessário estipular este período em função dos argumentos que apresentarei mais adiante. Também penso que em um contexto de descriminalizarão a mulher teria acompanhamento médico e psicológico para melhor conduzir sua decisão.
O critério de quando um indivíduo começa a existir não é tão arbitrário como algumas pessoas pensam. Desta forma, é necessário diferenciar embrião de feto. O primeiro diz respeito ao período em que ocorre a diferenciação orgânica, que vai da segunda até aproximadamente a sétima semana depois da fecundação. O segundo é relativo ao estágio de desenvolvimento intra-uterino, e que tem início após oito semanas de vida embrionária (1). Embora o cérebro esteja presente a partir da nona semana, este se encontra nono início do desenvolvimento e portanto em condições mínimas de operação (2); além disso, evidências apontam que a sensação de é inexistente antes do terceiro trimestre de gestação (3). Sendo assim, o cérebro só terá sua função completa no período fetal, e não no embrionário. Desta forma, quando se interrompe uma gravidez nas primeiras semanas está se interrompendo apenas o desenvolvimento de um conjunto de células, que não possuem nenhuma capacidade de sentir dor (justamente porque o sistema nervoso ainda não existe em completo desenvolvimento). Portanto, aborto e infanticídio são duas coisas completamente diferentes. Aborto, nesse sentido, nada mais é que interromper uma gestação nos primeiros estágios.
Naturalmente que é a questão de em qual momento um organismo pode ser identificado como uma “vida” que muitos anti-abortistas tentam argumentar. Entretanto, uma crença pessoal, sobretudo neste tema, tem elevada chance de ser desprovida de justificação se não tiver consistência baseada nas evidências. Acerca do tema do aborto, penso que o Estado deveria seguir o que a ciência diz sobre quais os atributos que caracterizam a existência de um ser humano, e não o que uma crença específica julga ser verdadeiro (aqui me refiro a crença no sentido de crer em algo, do tipo “acho que...”, e não necessariamente uma crença religiosa). A medicina considera a morte cerebral como critério para dizer quando uma pessoa morreu. Sendo assim, é logicamente defensável que o Estado deveria considerar a formação do cérebro como nascimento de um indivíduo, E NÃO A FECUNDAÇÃO. Seria determinismo genético definir a existência de um indivíduo apenas por seus genes (Stephen Hawking é genial não apenas por seus genes, mas também por sua trajetória cultural e experiências de vida). Se alguém pensa que existe uma vida humana dotada de consciência em um conjunto de células desprovidas de sistema nervoso (ou seja, nas primeiras semanas de gestação) é o ônus da prova dessa pessoa demonstrar. Não é o que a ciência adota como referência.
Não raro opositores do aborto desconsideram os dados mostrados pelas evidências ou eventos naturais do corpo da mulher. Estudos sugerem que a proporção de gravidezes resultando em aborto espontâneo pode chegar a 25% (4); outra inconsistência ocorre quando aqueles que são contra o aborto, porém fazem uso da pílula do dia seguinte. Tomando a pílula, a mulher também está evitando a gravidez, e disso nada tem de muito diferente de um aborto nas primeiras semanas de gestação (visto que neste estágio não passa de um aglomerado de células). Sendo assim, o argumento de "uma vida em potencial" não procede como defesa contra o aborto, uma vez que a masturbação masculina ou os óvulos que se perdem na menstruação feminina também poderiam ser considerados como uma vida em potencial de um indivíduo. Portanto, não vejo sentido lógico impedir a mulher de fazer o aborto caso seja sua vontade.
O aborto é uma realidade no Brasil; mulheres estão morrendo diariamente ao fazerem uso de procedimentos perigosos e inadequados.  Em face disso, a ONU já se manifestou para que o país tomasse medidas mais eficazes de proteção à mulher (5). Uma pesquisa realizada pela antropóloga Débora Diniz indica que "o aborto é tão comum no Brasil que, ao completar quarenta anos, mais de uma em cada cinco mulheres já fez aborto." (6) A pesquisa também mostrou que a prática do aborto independe da crença religiosa, e, talvez o mais preocupante, que em cerca da metade dos casos ocorreu internação pós-aborto (para um esclarecimento mais rápido desses resultados ver a entrevista da referência 7).
A atual prática de aborto no país prejudica mais a mulher com menos condições financeiras, e não é por acaso que a curetagem liderou os procedimentos do SUS entre 1995 e 2007 (8). O Estado continua impedindo o aborto, mas gasta uma quantia elevada para pagar cirurgias de reparo das mulheres que chegam ao SUS vindo de clínicas nas quais são tratadas com o mínimo de cuidado. É uma lógica contraproducente: o Estado proíbe, mas paga para fazer reparos daquilo que ele mesmo proíbe.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, a taxa de mortalidade de abortos induzidos se situa na faixa de 0,2 a 1,2 mortes para cada 100 mil abortos onde a prática é permitida. Por outro lado, nos países onde o aborto não é permitido, o número de mortes pode chegar a 330 para cada 100 mil habitantes. Em outras palavras, em países onde a prática é proibida, a mortalidade devida a abortos é mais que 300 vezes maior (9). Em face desses dados, dizer que o aborto não é questão de saúde pública é tapar os olhos para o óbvio.
Alguns tentam justificar sua posição anti-aborto através de uma opinião de que a prática não é ética nem mesmo humanista. Considero esta posição muito rasteira. Primeiro porque é uma tentativa vaga de encarar a situação de maneira unilateral; existem entidades declaradamente humanistas que são favoráveis ao aborto. Além disso, ética é uma disciplina da filosofia. Como exemplo, através do ponto de vista ético do utilitarista Peter Singer a prática do aborto pode ser plenamente defensável (10).  Tomando o problema de outra forma, o filósofo Michael Tooley (11) também defende o aborto a partir de uma análise do que significa ter direito a algo. Reconheço a existência de outros filósofos na área que se opõem ao aborto, mas citei dois apenas para mostrar que não existe um consenso absoluto do tema.
Os casos mais sensíveis são os anencéfalos. E apenas lembrando: má formação é muito diferente de anencefalia. No primeiro, dependendo do caso, o indivíduo pode viver tranquilamente - e em condições emocionalmente e materialmente satisfatórias eu não sugeriria ninguém a abortar se estivesse em pauta somente este motivo, mas, claro, a decisão última cabe somente para a mulher (e é este um direito que deve ser reconhecido para a mulher); no segundo, a chance de sobreviver é NULA (12). Sendo assim, penso ser uma crueldade OBRIGAR uma mulher a levar até o fim da gestação um feto que morrerá em poucas horas. Pelo menos neste caso nossos governantes já reconheceram que é bem menos custoso para mulher decidir pelo aborto nas primeiras semanas.
Em suma, o cenário atual coloca o Estado como um agente proibitivo de uma decisão que cabe somente ao corpo de uma pessoa. A questão aqui não é a imposição, mas a liberdade de escolha. E o Estado, e nenhuma outra pessoa, devem ditar regras com relação ao que fazemos ao nosso próprio corpo. Ter decisão sobre o próprio corpo é reconhecer um direito natural das mulheres. Portanto, tal prática não deve continuar a ser vista como um crime.

Referências 

(1) Klossner, N.J. - Introductory Maternity Nursing, 2006, pg.103
(2) http://en.wikipedia.org/wiki/Fetus#cite_note-11
(3) Lee, S.J. et al.; Fetal Pain - A Systematic Multidisciplinary Review of the Evidence; JAMA, 2005, Vol 296, n°8.
(4) Wilcox et al. 1999, New England Journal of Medicine

(10)Singer, Peter. Ética Prática. Ed. Martins Montes.
(11)Tooley, Michael. Abortion and Infanticide, Philosophy & Public Affairs, Vol.2, 1972.

Atualização (17.11.12): Este texto também foi publicado no Projeto Livres Pensadores


quarta-feira, 11 de julho de 2012

Bóson de Higgs e uma reflexão sobre o método científico

[Texto publicado no Livres Pensadores]

Na primeira semana de Julho de 2012 os cientistas anunciaram fortes evidências de que o Bóson de Higgs teria sido finalmente descoberto. Segundo a física teórica, esta partícula seria a responsável por dar massa a todas as demais existentes. De maneira bem simples, vale lembrar que o fóton, outra partícula fundamental, mediadora da força eletromagnética (a luz é uma onda eletromagnética) não possui massa. Não seria nenhum exagero dizer que - segundo o modelo padrão que explica a existências das partículas -, não fosse o bóson de Higgs, não existiria no universo as “coisas com massa”; logo, não existiriam as galáxias, as estrelas, os planetas, a vida.
A “caçada” ao bóson de Higgs serve como motivação para uma reflexão tão importante quanto os resustados da ciência, aquilo que muitas vezes fica somente nos bastidores, porém é o que garante o sucesso desta atividade humana. Quando o físico britânico Peter Higgs propôs a hipótese da partícula, em 1964, a primeira revista científica para o qual ele submeteu seu trabalho (Physics Letters) rejeitou em publicar suas ideias. Em outra tentativa (Physics Letters Review), após algumas melhorias, seu trabalho foi aceito. Nota-se, portanto, que a hipótese da existência dessa partícula já existe há quase 50 anos. Foi necessária a tecnologia atual dos aceleradores de partículas para que a hipótese pudesse realmente ter sido testada. E isso não aconteceu somente com esta partícula, mas sim com várias outras. 

O poder preditivo da física teórica está exemplificado com a “caçada” ao bóson de Higgs. Determinada hipótese é levantada com fundamentos teóricos e, mesmo que ainda não sendo possível comprovar a ideia durante algum período de tempo, se tal hipótese for testável pode ser considerada científica. Nesse sentido é necessário destacar que se o bóson de Higgs não fosse descoberto não significa dizer que não foi realizado ciência; muito pelo contrário, pois a componente experimental do método não garante a satisfação subjetiva dos cientistas, mas, como já dito, podendo ser testável, é sim científico. Ainda se o bóson de Higgs não fosse encontrado, isso poderia ser, de fato, fascinante no sentido de poder abrir caminho para outras questões na física de partículas (estaria o modelo padrão equivocado, a predição do bóson em questão foi falha, o modelo padrão é apenas uma parcela de outro maior, etc.). Em outras palavras, o filósofo Thomas Khun intitularia este acontecimento como uma mudança de paradigma. Nesse aspecto, uma mudança mais recente no paradigma da ciência não é melhor que seu paradigma antigo, mas apenas diferente. Além disso, o sucesso ou não dessa “caçada” nos mostra que na ciência, ao contrário de algumas outras atividades humanas, não existe o apelo a uma autoridade, a figura inquestionável. A natureza é o tribunal final.
    O fazer científico ressalta de maneira sublime nossa ignorância sobre as coisas do mundo. Embora afirmar que o método pelo qual a ciência funciona seja o mais confiável para descobrir a natureza possa carecer de argumentos justificáveis, eu diria que o processo auto-corretivo e humilde no qual os cientistas estão submetidos garante ao método uma categoria de excelência quando o assunto é aplicação prática. Naturalmente que a ciência não se preocupa somente com questões de aplicações imediatas, e quem defende que o LHC (o equipamento construído para fazer diversos testes na área de física de partículas) foi um empreendimento muito caro talvez esteja pouco informado do real investimento da ciência no mundo. O bóson de Higgs talvez não nos traga aplicações práticas de imediato. Entretanto, quem imaginaria que no século 18, com os estudos descoberta da eletricidade, o mundo sofresse uma revolução tão gigantesca, de tal forma que se hoje nos comunicamos foi graças a essa empreitada humana de descobertas e curiosidades. Ainda mais atual, é graças a mecânica quântica que podemos fazer usos de CD, DVD e blu-ray. E mais fascinante ainda é que os problemas teóricos da física mal começaram a ser respondidos. O paradigma atual sugere que tudo o que conseguimos ver desse universo representa somente 4%. O resto? Bem, ainda é uma incógnita. Seria alguma partícula ainda para ser descoberta, ou uma nova teoria elegante (teoria das cordas)? Quando estas forem respondidos, novas perguntas certamente virão à tona. E isso inspira recordar outra peculiaridade da ciência: não é um conhecimento absoluto, pois o escrutínio das hipóteses é realizado de maneira a evitar a interferência subjetiva.  
Talvez isso tudo já tenha sido melhor explorado por Carl Sagan: “Existem muitas hipóteses na ciência que são erradas. Isso é perfeitamente correto; elas são a abertura para descobrir o que é certo. A ciência é um processo auto-corretivo. Para serem aceitas, novas ideias devem sobreviver aos mais rigorosos padrões de evidência e escrutínio.”

OBS.: este texto não explica com detalhes o que é o bóson de Higgs, nem era a intenção. Para saber veja:
- Ciência no Cotidiano : o bóson de Higgs ou a partícula de Deus - http://www.youtube.com/watch?v=RBchi6xKmTI
- Fronteiras da ciência (rádio universidade da UFRGS, episódios 12 e 17): http://www6.ufrgs.br/frontdaciencia/



             

sábado, 23 de junho de 2012

Eram as pirâmides dos astronautas?

[Texto publicado na Sociedade Racionalista]

Não raro alguém diz acreditar que algumas obras da humanidade são, talvez, não tão humanas como aparentam ser. Em outras palavras, muitos argumentam que elas só foram possíveis porque tivemos algum auxílio, total ou parcial, de companheiros não terráqueos. Talvez não exista melhor representante dessa ideia do que as pirâmides do Egito. Os proponentes muitas vezes defendem as mais diversas teorias conspiratórias envolvendo tecnologia extraterrestre. Entretanto, basta um pequeno zelo para com a história do povo egípcio para entender que é muito mais razoável crer na capacidade humana de criar arquiteturas de engenharia do que crer na hipótese de que a tecnologia necessária para tais construções não pertenciam a nós.
Um olhar inicial poderia ser desatento, pois, focado nas pirâmides de maior ostentação, não seria capaz de considerar o fato das construções serem construídas com acúmulos de conhecimentos arquitetônicos. Os egípcios, antes de empenhar seus esforços para estas grandiosidades, já tinham conhecimento prático de outras estruturas grandiosas, como pode ser constatado no caso das construções das barragens para proteger das inundações do Nilo. As enchentes eram um evento anual, e o efeito era devastador, sobretudo causando a escassez de alimentos.  Sob o comando de Menés ( ou Hor-Aha, cerca de 3000 a.C.), o qual se acredita que foi o responsável por unificar o alto e baixo Egito em um único reino, foi construída a primeira barragem na história, na cidade de Mênfis. Ao leste desta cidade, mais tarde foi construída outra barragem (cerca 2550 a.C.), que ainda hoje pode ser estudada, com o que sobrou dela, para entender como os egípcios aplicavam suas técnicas de construção. Alguns estudiosos apontam que esta barragem não segurou a força da inundação. O que evidencia que muito conhecimento arquitetônico da época ainda era dependente de tentativa e erro.
Considerando a importância dos faraós na cultura do Egito antigo (inclusive de caráter divino), as pirâmides começaram a ser construídas para acomodar o corpo do faraó após sua morte. No caso, estas seriam uma evolução arquitetônica de outras estruturas suntuosas (mastabas) que de praxe já eram construídas há séculos. Estima-se que foi construído um número de pirâmides superior a 100; entretanto, para atingir a elegância e perfeição das últimas pirâmides foram necessários 6 reinados de faraós, além de muitos desastres. Djozer foi o primeiro faraó a encomendar (aproximadamente 2667 a.C.) uma super estrutura de pedra. Vale ressaltar que um eventual sucesso na construção desta obra colocaria o reinado do Egito como um dos mais poderosos, bem como elevar a divindade do faraó. Esta estrutura, ao contrário das demais, seria construída não de tijolos, mas de pedras. Esta primeira mega estrutura era escalonada, com um aspecto de degraus. Além disso, foram construídas muralhas de calcário em volta, e o acabamento destas demonstra a insegurança, e até certo ponto amadorismo de engenharia, visto que elas eram acopladas a uma parede para dar apoio, evitando assim que tombassem. Não se sabia, na época, que se pode construir uma coluna que se mantenha em pé. Se os conspiracionistas que defendem a ideia que extraterrestres com mais tecnologia ajudaram os egípcios na construção de pirâmides considerassem isso, talvez fossem mais contidos em seus exageros. Parece contraditório que uma civilização extraterrestre seja capaz de viajar consideráveis anos-luz pelo espaço, certamente em naves da mais elevada tecnologia, e ainda se sentissem inseguros ao ponto de terem que construir elementos totalmente desnecessários na construção dessas obras.
                                                     Pirâmide de Djoser em Saqquara.
Mais tarde, no reinado de Snefru (cerca de 2500 a.C.), uma nova tentativas de construção ilustra que o aprendizado era contínuo, e não tinha nada de tecnologia que não fosse humana. A pirâmide de Meidum é tida como intermediária entre as do tipo escalonadas e as verdadeiras piramidais. Entretanto, aparentemente a obra sofreu um desmoronamento (embora não haja consenso se foi um projeto inacabado). Outro projeto, anos depois ainda no mesmo reinado, também resultou em desmoronamento que, segundo alguns estudiosos, sugerem como a causa por ter sido edificada em solo instável. Sendo assim, com tamanha tecnologia dos seres extraterrestres, como não seriam capazes de prever que o solo, naquele local, não seria o mais apropriado para aquela estrutura? Snefru, entretanto, não estava disposto a abandoar sua segunda tentativa, e o resultado é a conhecida pirâmide curva. Isso aponta mais para o esforço humano em conseguir atingir objetivos, mesmo depois de alguns fracassos, do que a hipótese de seres extraterrestres com elevada tecnologia nos ajudando nas construções. Além disso, se o objetivo final era atingir a pirâmide perfeita, é difícil encontrar argumentos que impediriam nossos amigos cósmicos de construírem logo de imediato as enormes estruturas desejadas, sem a necessidade que isso ocorresse à custa de um longo tempo e de desastres tão marcadamente humanos.

Pirâmide de Meidum (contruída no no reinado de Snefru).

                       Pirâmide Curva (outra pirâmide construída no reinado de Snefru).

Partindo da necessidade de construção de barragens no início do antigo Egito, o acúmulo de conhecimento de engenharia e arquitetura permitiu, finalmente, a construção da mais elegante e grandiosa estrutura do antigo Egito, a pirâmide de Quéops. Muito esforço, tentativas e erros que culminaram para o conhecimento desta técnica. Acredito que a hipótese extraterrestre é extremamente fraca, uma vez que carece de evidência para ser defensável. Em vista de várias outras explicações mais prováveis, da qual temos um conjunto de evidências sólidas, é possível sim creditar a construção destas estruturas ao esforço humano. Parece existir um fascínio pelo desconhecido, o que, muitas vezes, nos impele a fazer hipóteses extraordinárias com as coisas que, em um primeiro contato, não entendemos direito.
                                               A grande pirâmide de Quéops.
Margaret R. Bunson, Encyclopedia of Ancient Egypt – Revised Edition, 2002.

Construindo um império - Egito - History Channel: http://www.youtube.com/watch?v=TIcGn4VYYSA

















sexta-feira, 22 de junho de 2012

Deuses e números

         Afinal, de qual Deus estamos falando? Um estudo apresentado em um portal virtual mostra um impressionante número de quase 5000 nomes de deuses distintos, surgidos ao longo da história humana (1). Carl Sagan, em um capítulo do livro Variedades da experiência científica, colocou a questão da seguinte forma: se estamos discutindo a ideia de Deus e ficarmos restringido aos argumentos racionais, então é útil saber o que estamos querendo dizer quando falamos “Deus.” Para os romanos, os cristãos eram ateus. Eles não acreditavam nas entidades dos deuses do Olímpio. Nesse sentido, quando alguém diz que não crê em um Deus determinado, ele é ateu com relação a esta divindade. Qual o motivo, portanto, de um Deus em particular ser mais ou menos provável que os Deuses do Olímpio, ou qualquer outro dos 5000 catalogados?
          O ser humano sempre criou seus mitos e Deuses ao longo da história. O catálogo supracitado não deixa dúvidas disso. Ademais, dados mais ou menos atuais sugerem que o número de ateus no mundo não ultrapassa 3% da população mundial (2). Isto não seria, portanto, uma evidência de que algum Deus realmente exista? Em outras palavras, diante do número tão variado de Deuses, e da quantidade imensa de pessoas que neles acreditam, não estaria o ateu em um desafio para manter sua posição válida? Um questionamento deste tipo levaria a várias outros desdobramentos; porém, para manter o foco na questão numérica do argumento, vale, por enquanto, lembrar que quantidade não significa verdade. Se todas as pessoas no mundo acreditarem em Deus, isso não garante que ele exista de fato; de maneira similar, se todas as pessoas no planeta um dia se tornarem ateias, isso não significa que, de fato, que Deus nenhum exista.
       Acredito que uma das possíveis explicações da questão numérica possa estar relacionada diretamente com uma característica intrínseca do ser humano de ter curiosidade sobre as coisas. A origem e evolução das coisas. Em Dezembro de 2011 tive a oportunidade de estar presente em uma palestra de um grande pesquisador, cuja pesquisa tem o enfoque na origem da vida, Antônio Lazcano. O simpático cientista iniciou sua palestra lembrando o público de diversas personalidades que foram, talvez, os pioneiros mais importantes em diversas áreas de pesquisa. O sistema solar, com Kant e Laplace; a evolução das espécies, com Lamarck e Darwin; a relação de calor e trabalho (termodinâmica) com Carnot e Thomson; a população mundial, com Malthus; o sistema econômico, com Marx e Engels; a religião, com Renan*. Todas as ideias destes homens derivaram da curiosidade e da necessidade por respostas. Neste sentido, nada mais natural que nossos antepassados também se questionassem sobre a natureza ao seu redor. Sendo assim, considerando seus métodos limitados, o sobrenatural poderia ser a razão de qualquer fenômeno da natureza. Não por acaso que na lista dos 5000 Deuses é possível encontrar nomes relacionados com a chuva, vegetação, mar, animais e outros vários que lembram diretamente algum aspecto da natureza.
        Caso a existência de Deus por número de crentes fosse uma argumentação válida, uma exceção traria sérias objeções para a existência de uma divindade. Embora a maioria das culturas do planeta tenham seu(s) Deus(es) característicos, é sabido que existem casos que sequer existem mitos de criações. A tribo amazônica Pirarrã é um exemplo disso, e conforme discute o linguista Daniel Everett o povo da tribo sequer tem interesse pela figura de Jesus Cristo (3, 4). O cientista, antes crente, depois de uma tentativa frustrada de converter a tribo, se tornou ateu (5). 
         Considerando o elevado número de divindades da história humana e, sendo estes Deuses tão diferentes entre si, são improváveis que sejam os mesmos apenas com nomes e/ou atributos distintos. Nesse sentido, certamente a questão, não somente da quantidade numérica, mas da religião como manifestação humana, pode ser alvo de investigação sob a óptica evolutiva (6).
      Com isto exposto, é difícil coadunar a existência de uma comunidade, ou uma cultura inteira - que jamais teve a necessidade de postular a existência de um Deus -, com a moral, que é um dos aspectos centrais nas doutrinas de pelo menos das três maiores religiões monoteístas existentes. E ainda falando em números, não se configura uma exceção o fato de uma religião não ter a figura de Deus como componente principal, ou até mesmo não possuir este ente no seu sistema de crenças. O budismo, a sexta maior religião do mundo (7) é não-teísta (pelo menos no sentido cristão) e o jainismo, uma das religiões mais antigas da Índia, também possui a característica da ausência de Deus como criador. Seriam os integrantes destes povos automaticamente desprovidos de moral, e também automaticamente condenados ao fogo eterno? Esta é uma discussão bem mais complexa, que merece uma atenção extra, que pretendo abordar em um futuro breve.


[*Aqui deixei somente a referência do Lazcano, que certamente se limitou aos precursores da ciência moderna. Entretanto, sabe-se que estes assuntos foram alvos de investigação, muitas vezes, bem antes na história da humanidade. Por exemplo, Empédocles, aproximadamente 2460 anos antes de Charles Darwin, já havia sugerido a origem dos seres vivos por um processo de evolução a partir do caos sem a necessidade de nenhum dogma religioso.]
1. http://www.godfinder.org/






Em defesa da ciência e tecnologia: O porquê de investir em certas pesquisas.

[Texto publicado no blog da Liga Humanista Secular do Brasil - Bule Voador]

A ciência não é, seguramente, uma panacéia. Por outro lado, tão pouco é indiferente com as necessidades humanas. Entretanto, em algumas áreas de pesquisa, sobretudo aquelas com menor conseqüência prática em curto prazo, sofrem, seguidamente, críticas que concernem à necessidade real de investir tempo e dinheiro.
          Argumentos rasteiros do tipo “o que querem esses cientistas estudando Marte? Temos problemas muito piores como o câncer para serem estudados”, ou “eles estão querendo brincar de Deus, devemos impedir investimentos com essas pesquisas”, são comuns de serem encontrados. No primeiro caso, a sentença é notavelmente falaciosa ao ignorar que a pesquisa do câncer recebe atenção exaustiva por parte de pesquisadores. Também não ponderam que a ciência é um conjunto de varias áreas, e, sendo assim, um acadêmico com formação em astrofísica não tem habilidades práticas para estudar técnicas modernas de cura de doenças complexas, e vice-versa (no sentido da ciência formal: pesquisar, resolver problemas e publicar trabalhos. Isso não significa que ele não possa ser bem informado e ainda ter opiniões que possam ajudar outras áreas. Exemplo dessa incrível versatilidade foi Erwin Schrodinger, que, sendo físico teórico, formulou hipóteses que anos mais tarde ajudariam na descoberta da estrutura do DNA). Já os defensores da segunda afirmação desconhecem o mecanismo da metodologia científica, que, por definição, não se preocupa com a atuação divina.

Muitas vezes algumas pessoas atacam as pesquisas cientificas através do argumento financeiro. Não reconhecem, entretanto, que as verbas destinadas a esta atividade não são elevadas. O país que mais investe seu PIB em ciência é a Suécia, e o valor não chega a 4%. Menos de 25% dessa quantia é custeada pelo governo; o restante é financiado por empresas privadas (1). No Brasil a situação é ainda mais dramática; em 2010 o nosso país investiu menos de 1,2% de seu PIB em ciência e tecnologia (2).

 Uma interessante comparação pode ser feita com o investimento bélico. Por exemplo, na guerra do Iraque, os Estados Unidos tiveram um gasto mensal de mais de 11 bilhões de dólares (3); além disso, para conduzir a guerra, o mínimo estimado, em média, por mês, foi de 6 bilhões de dólares (4). O telescópio James Webb, sucessor do Hubble, foi estimado em 8,7 bilhões dólares (5). Em outras palavras, um mês de investimento em guerra é quase o suficiente para pagar um dos projetos científicos mais ambiciosos na história da astronomia. Sem entrar em mérito da agenda política dos governos, parece que a questão não é tanto o pouco dinheiro, mas sim como é realizada essa distribuição. O argumento, dito por muitos, que projetos como esse são um desperdício, uma vez que o mundo ainda tem severos problemas, como a fome, acaba perdendo forças. Nesse sentido, a guerra é um dos grandes agentes causadores da fome do planeta (6), e não o investimento em ciência e tecnologia. Ademais, atualmente o gasto global com despesas militares é 55 vezes maior que o gasto com as despesas dos programas espaciais de todos os países do mundo (7). Assim, nota-se que não estamos investindo quantias absurdas em desenvolvimento científico.

Outro conhecido argumento critica os investimentos elevados do programa espacial americano (NASA). Infelizmente, muitas vezes são expressos somente os números absolutos, que, aparentemente, podem parecer alto. Entretanto, o investimento em 2011 foi somente de 0,53% do orçamento do governo (8). Além disso, não somente a NASA, mas toda pesquisa da astronomia resulta em benefícios variados. Incentiva a curiosidade, o que fazer surgir novos talentos na área das ciências e tecnologia e emprega milhares de pessoas. Enganam-se aqueles que defendem a ideia de que isso não traz conseqüências práticas. Considerando somente os últimos meses, diversas matérias, relacionadas diretamente com a astronomia, têm aparecido: através de estudos de buracos negros, surgiu a possibilidade de um método mais seguro e mais efetivo de radioterapia com o uso de elétrons de baixa energia (cura do câncer) (9); uma biocápsula – feita de nanotubos de carbono – que pode diagnosticar e tratar imediatamente a pessoa (10); estudando uma das maiores tempestades solares dos últimos anos, somos capazes de planejar rotas de vôos mais seguras, uma vez que a tempestade pode gerar distúrbios em sistemas de comunicação na Terra (11).
             O estudo do cosmos nos mostra, humildemente, nossa posição não privilegiada no universo: revela ainda mais a urgência de cuidar de nosso "pálido ponto azul"; entre outras coisas, foi estudando Vênus que descobrimos que se não formos capazes de contornar o efeito estufa nosso planeta poderá ser extinto rapidamente.

              Não aproveitamos os benefícios somente da pesquisa derivado do mundo macro. Conhecer os mecanismos da física básica tem permitido, por exemplo, a criar pele artificial que fornecerá sensibilidade a uma geração futura de robôs. Isso graças ao efeito do tunelamento quântico, que, como hoje é bem sabido, é um dos fatores responsáveis pela fusão nuclear que ocorre no Sol (12). Similar a isso, em uma aplicação direta para os seres humanos, foi possível criar um material de pele artificial com sensibilidade semelhante à da pele humana a partir de nanofios semicondutores (13). Em outra recente fantástica novidade da escala nanométrica, pesquisadores desenvolveram nanorrobôs capazes de destruir células cancerígenas (14).

           Nos últimos anos, têm sido dada maior atenção pela busca por vida extraterrestre com enfoque nos microorganismos existentes na própria Terra, os chamados extremófilos. Aqui, as críticas também são intensas. Entretanto, as pesquisas dos organismos microscópios têm mostrado resultados notáveis, que vai além dos interesses dos astrobiólogos por possibilidade de vida extraterrestre. As enzimas obtidas a partir desses organismos extremófilos têm encontrado aplicações variadas, das quais se destacam: produção de detergentes, de biocatalisadores, de biosensores, na degradação de materiais poluentes e produção de antibióticos (15).

       Os campos de pesquisa nitidamente de ciência básica não são menos importantes. Os estudos da origem da vida, além de satisfazer a necessidade humana por buscar as respostas mais profundas sobre a nossa existência, também revelam a possibilidade de encontrar utilidade prática na pesquisa biomédica (16). Com a derrubada da biogênese, a humanidade pôde mudar seu estilo de vida. Começamos a se preocupar mais com a assepsia nos hospitais, limpeza dos alimentos, higiene, ter cuidado com roupas e tratamento de água. Em última instância, aumentou longevidade da humanidade. Até a indústria de enlatados certamente encontrou uma possibilidade de se tornar realidade por causa dessas pesquisas.

           Considerando o desejo por respostas, intrínseco ao ser humano, a atividade científica permite a possibilidade de responder, através de um escrutínio minucioso, algumas das perguntas mais fascinantes da nossa existência. Entretanto, poderíamos até mesmo desconsiderar esse fator, já que outras atividades humanas podem fazer algo semelhante às nossas necessidades de respostas. Todavia, o investimento na ciência é suficientemente justificado através das conseqüências práticas para a sociedade. A ciência, portanto, se mostra capaz de resolver problemas, advinda do conhecimento funcional, que é um dos fatores que caracteriza essa atividade humana (17).

Por fim, termino o post com um interessante pronunciamento do físico Stephen Hawking, realizado em comemoração aos 50 anos da NASA (18):

´´Ir para o espaço certamente não vai ser barato, mas exigirá só uma pequena proporção dos recursos mundiais. O orçamento da NASA permaneceu grosso modo constante em termos reais desde a época dos pousos da Apollo, mas decresceu de 0,3% do PIB dos Estados Unidos em 1970 para 0,12% hoje. Mesmo que aumentássemos vinte vezes o montante gasto em empreendimentos espaciais internacionalmente, isso seria apenas uma pequena fração do PIB mundial.
Haverá quem argumente que seria melhor gastarmos nosso dinheiro resolvendo os problemas deste planeta, como a mudança climática e a poluição, em vez de desperdiçá-lo em uma busca possivelmente infrutífera por um novo planeta. Não estou negando a importância de combater a mudança climática, mas podemos fazer isso e ainda poupar um quarto de 1% do PIB mundial para o espaço. Nosso futuro não vale um quarto de 1%?``

















(17)           http://bulevoador.com.br/2010/03/9251/