Em
seu novo livro, intitulado “Contra a Democracia” (Against Democracy) — recentemente traduzido para o português —, o
professor e filósofo Jason Brennan destaca a ignorância, a apatia e a
truculência dos eleitores. Uma vez abordado isso, o autor disserta a
possibilidade de aperfeiçoamento da atual democracia. Sua tese, embora com
título provador, não é necessariamente algo inédito. Historicamente, ao menos
desde Platão já são levantadas questões semelhantes. Contudo, é na combinação de filosofia política
com a descrição dos melhores resultados advindos de pesquisas que o autor se
destaca. O que Brennan tem a nos dizer e como isso se espelha no Brasil atual?
O
filósofo descreve três modelos arquetípicos de cidadãos: Os Hobbits, os
Hooligans e os Vulcanos. As escolhas dos nomes são evidentemente referências
aos filmes conhecidos da cultura popular, e ajudam lembrar melhor o que cada um
deles representa. A raça dos Hobbits, no romance Senhor dos Anéis, se preocupam
pouco ou quase nada com o mundo exterior, e estão constantemente satisfeitos em
viver suas vidas mundanas. Por analogia, os Hobbits políticos são apáticos e,
sobretudo, despreocupados com a política. Eles não têm opiniões fortes ou fixas
sobre a maioria das questões. Além disso, têm pouco conhecimento científico e
são em grande parte ignorante acerca dos eventos atuais e sobre história em
geral. Vivem suas vidas sem dar muita importância para reflexão política. Os
Hooligans políticos, por outro lado, mantêm ideias muito fortes e fixas. A
característica que mais os marca é que são capazes de explicar e argumentar
seus próprios pontos de vista, no entanto falham miseravelmente na tentativa de
explicar adequadamente os pontos de vista daqueles com quem discordam. São
enviesados, ou seja, consomem desproporcionalmente informações que confirmam
suas opiniões preexistentes, evitando opiniões ou evidências que contradizem suas
ideias pré-existentes. Os Vulcanos (em referência a Star Trek) pensam racionalmente
sobre a política. Além disso, possuem opiniões cuidadosas baseadas no melhor e
nas mais atualizadas informações científicas, sempre fundamentadas com o apoio
das ciências sociais e filosofia. Eles mudam de ideia quando a evidência exige
e, ao contrário dos Hooligans, são capazes de explicar e defender pontos de
vista contrários sem que o sangue lhe corra aos olhos. Embora interessados em
política, conseguem manter um interessante um tanto desapaixonado, visto que
tentam ativamente evitar ser parcial e irracional.
Em
posse desses arquétipos, Brennan nos apresenta várias razões que fundamentam
algo não muito animador: A maioria dos votantes nas democracias, bem como os
ativistas e os membros de partidos se comportam, em média, com as
características entre Hobbits e Hooligans. Quase ninguém pode chamar-se um
Vulcano verdadeiro. Para reforçar seu modelo, o autor apresenta uma extensa
revisão dos melhores e mais atuais trabalhos sobre vários tópicos de pesquisa,
passando por psicologia, economia e neurociência.
A
conclusão geral é que política nos deixa mais burros. Na psicologia, a título
de exemplo, o autor nos lembra das diversas deficiências de raciocínio que
ficam ainda mais ampliadas quando o assunto é política: viés de confirmação,
viés de grupo, raciocínio motivado, pressão de grupo, viés de disponibilidade,
etc. Outro problema destacado pelo autor é que os eleitores quase nunca estão
dispostos a fazer o trabalho custoso de colher o máximo de informações
possíveis sobre um determinado assunto. Eis um exemplo: Um eleitor com fortes
opiniões contra imigrantes tende a superestimar a quantidade de dinheiro gasto
com ajuda aos estrangeiros, muito provavelmente porque sequer deve ter feito a
tarefa mínima de cruzar dados ou ler opiniões de especialistas. Normalmente, a
pessoa apenas buscará dados que reforçassem sua ideia original (talvez para
inflar artificialmente estatísticas) ou acreditar em falsidades visando
meramente ajustar sua crença na ideologia de interesse. E sobre a ignorância
dos eleitores, alguns dados da realidade americana são assustadores. Segundo
dados referenciados no livro, no ano de 1964 apenas uma minoria de cidadãos
sabia que a União Soviética não era membro da Organização do Tratado do
Atlântico Norte; atualmente, 73% dos americanos não entendem o que foi a Guerra
fria e 40% dos americanos não sabem contra quem os Estados Unidos lutaram na
segunda Guerra Mundial.
Em recente entrevista, Brennan
comenta algo muito razoável: Ter conhecimento, mesmo o mais básico, toma uma
enorme quantidade de tempo, e isso é um tanto incompatível com a atual
sociedade baseada em divisão de trabalho. Logo seria ilusório que as pessoas
comuns tenham conhecimento suficiente para votar de maneira informada e
inteligente sobre todos os temas. Para consertar isso, a solução seria colocar
no poder as pessoas que se informam sobre o assunto. O paralelo é o seguinte:
Da mesma forma que quando vamos a um médico queremos alguém competente e com
credenciais para nos ajudar na nossa enfermidade, também queremos pessoas com competência
e bem informadas para governar. Em outras palavras, não parece razoável que
fiquemos submetidos a decisões de eleitores incompetentes, da mesma forma que não
seria razoável alguém se submeter à força a um cirurgião incompetente.
Observando
o modo como as democracias atuais operam, o cenário acima está longe do ideal.
O que o filósofo faz no livro é discutir alternativas, não para pôr fim na
democracia, mas para melhorá-la. Por isso ele endossa a chamada epistocracia,
que nada mais é que a democracia fundada na episteme, ou seja, no conhecimento:
Decisões políticas deveriam vir exclusivamente dos que têm conhecimento. Uma
vez feito este diagnóstico, a maneira como proceder a este novo modelo democrático
é o foco do restante do livro. Em uma de suas sugestões, Brennan comenta que um
modo pelo qual poderíamos fazer isso é pela a imposição de um exame de
qualificação eleitoral, semelhante ao exame de direção. A função basilar deste
teste seria testar em nível geral o básico das ciências sociais relevantes e um
conhecimento básico acerca dos candidatos, evitando dessa forma eleitores
severamente incompetentes ou excessivamente mal informados.
Se
o que Brennan diz está correto, e obviamente está aberto ao debate, alguns
exemplos tupiniquins no cenário atual parecem ir ao encontro do que diz o
filósofo. Meses atrás foi divulgado resultados mostrando que os eleitores desconheciam
as mudanças da proposta da reforma trabalhista. Concomitantemente a esta
informação foi comentada outra pesquisa de opinião na qual foi revelado que
81,3% dos entrevistados afirmaram que nenhum representante político tem
credibilidade para efetuar reformas estruturais. Oras, isso parece sugerir que
um eleitor, ao mesmo tempo, sabe muito pouco sobre a reforma e não está muito
disposto a se informar. Aqui, o Breenan parece ter razão: A maioria dos
eleitores oscila entre o desinteresse completo ou o interesse excessivamente
enviesado, ou seja, oscilam em algo entre os arquétipos de Hobbits e Hooligans.
Em
outras pesquisas empíricas discutidas no livro, conclui-se que as pessoas mais
ativistas na política são as que mais tendem a ser Hooligans. Enquanto que ser
exposto a pontos de vista contrários tende a diminuir o entusiasmo por suas
próprias visões políticas, os cidadãos mais ativos e participativos tendem a
não se envolver em muitas discussões políticas transversais. Em vez disso, eles
procuram e interagem apenas com outros com quem eles já concordam. E quando
perguntado por que outras pessoas possuem pontos de vista contrários, os
cidadãos mais participativos amiúde respondem que os outros devem ser estúpidos
ou corruptos. Segundo o raciocínio do filósofo, é muito comum o fenômeno de
consenso identitário, no qual os interesses ideológicos de grupo estão acima da
busca desinteressada pela verdade.
Nada
disso se segue que as discussões sobre os temas atuais não deve ser feitas. É
precisamente o contrário disso que a leitura do livro "Contra a
democracia" urge. No entanto, o autor busca conciliar um novo modelo de
democracia que dê respostas mais eficientes tendo em vista a pouca disposição
ao estudo ou a inabilidade dos eleitores. As falhas na atual democracia são
pouco animadoras porque é tanto uma parte culpa dos eleitores, e outra parte
dos eleitos. A eleição do Trump e a saída do Reino Unido da União Europeia são
eventos que Brennan cita como dois exemplos atuais desses tropeços das
democracias. E engana-se muito quem pensa que os políticos são parte de uma
classe de iluminados que têm respostas certas para tudo. A sugestão do filósofo
não é inédita porque já tivemos vários outros que a defenderam, e o primeiro
deles foi um dos mais antigos. Platão foi o primeiro que se tem registro a
defender a epistocracia. O que Brennan faz é retomar com vigor a proposta, apresentando
sugestões de implementação na democracia atual.
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