Introdução
(Adaptação, Spike Jonze - 2002) |
Os
dois principais equívocos quando alguém compara cinema e literatura podem ser resumidos
da seguinte maneira: i) a tentação de qualificar o primeiro em função do segundo e ii) a alegação que o
entendimento de um determinado filme não pôde ser total em virtude do
espectador não ter tido ainda a oportunidade de ler o livro.
É
natural que o sentimento de satisfação receba, na maior parte das vezes, uma
avaliação superior relativo ao livro em detrimento ao filme. O filme, que evolve
imagens em movimentos, acaba de certo modo escravizando e/ou desapontando as
imagens mentais que o leitor eventualmente pudesse ter feito antes de assistir ao
filme. Assim, a questão que deve ser ressaltada é o fato de que cinema e
literatura fazem uso de abordagens e recursos distintos.
Pretendo
mostrar que a comparação direta com o livro - no sentido de qualificar a obra
cinematográfica -, é equivocada. Além disso, tentarei argumentar que uma obra
cinematográfica tem vida independente da obra literária – a primeira não
precisa depender de recursos externos para ser compreendida. Eventuais casos de
falha no entendimento do filme se devem às escolhas narrativas e/ou temáticas
equivocadas pelos responsáveis da película, e, portanto, o filme não deve
precisar de apoios externos a si mesmo na tentativa de fazê-lo entender melhor.
Esse
pequeno ensaio será dividido em das partes que, embora correlacionadas, podem
ser lidas de maneira independentes.
1 - A
qualidade de um filme independe da obra literária
O
espectador ao qualificar o filme como bom ou ruim deve reconhecer um aspecto
importante relativo ao ritmo de uma película. Todo roteirista está submetido ao
tempo de filmagem; ou seja, independente da história contar algo sobre um dia,
décadas ou a vida de uma pessoa, o tempo médio disponível é de 120 minutos.
E isso já revela muito sobre as diferenças de abordagens entre cinema e
literatura. No cinema, é necessário pensar as páginas como tempo, e não como
texto(1). É privilégio da literatura poder estender-se em sua narrativa o quanto o
autor desejar, o que ocorre, geralmente, em função do quanto o autor prefere
ser detalhista na descrição dos personagens e do ambiente à sua volta. O que
muitos espectadores não entendem é o que o cinema também faz essa descrição – e
igualmente pode ser mais ou menos aprofundada dependendo do cineasta -, mas os
recursos para executar isso são distintos aos da literatura. Em um sentido mais
geral, esses recursos são específicos da composição cinematográfica; ou seja, a
composição de um cenário ou do estado de espírito de uma personagem não precisa
necessariamente ser feita apenas por texto. E de fato, no cinema o texto no
sentido de apresentação de diálogos pode ser vista como secundário, ou pelo
menos como importância comparável aos demais recursos como ausência ou presença
trilha sonora, figurino, locação (externa ou interna), presença ou ausência
acentuada de som ambiente, iluminação, paleta da fotografia, disposição dos
objetos no cenário, atuação do ator (com foco em sua face revelando algum
sentimento, ou do corpo inteiro?), etc. Nesse sentido, a montagem é importante
para dar o ritmo (rápido, frenético, lento, etc.) apresentado na versão final
do filme.
(Ben Hur: Uma narrativa de Cristo, Fred Niblo, 1925) |
Entre
outras coisas, o tempo limitado para se contar uma história faz com que um
cineasta competente faça o bom uso dos recursos supracitados. Do mesmo modo, o
espectador disposto a entender melhor a linguagem cinematográfica não terá
dificuldade em entender que avaliar a qualidade de um filme dever ser uma
prática que depende somente do próprio filme, e de maneira alguma da sua obra
de adaptação. Isso quer dizer que um livro pode ser dito melhor que o filme (ou
vice-versa), mas apenas como consequência subjetiva de avaliação. Em outras
palavras, a justificativa de um filme ser bom ou ruim não deve ser feita em
função de uma comparação direta de duas linguagens que utilizam recursos
distintos. Um livro não pode ser dito que é ruim porque não houve trilha sonora
ao fundo, justamente porque isso é impossível ao recurso estritamente textual.
E se uma das razões de um filme ter sido mal feito for a trilha sonora isso é
culpa do próprio filme (da escolha equivocada dos realizadores), mas não da
obra na qual foi eventualmente adaptada.
(Fahrenheit 451, François Truffaut - 1966) |
Um engano
comum que parece ser fonte dessa falsa analogia é a ideia de que o filme, ao
passar pela avaliação do espectador, dependa única e exclusivamente do livro
para ser entendido. Esse equívoco é abordado melhor na parte 2 desse ensaio,
mas é relevante dizer nesse momento que existem critérios objetivos para
analisar a qualidade de uma obra cinematográfica. Alguns deles são a coerência,
complexidade e originalidade. Deve-se destacar que tais critérios não devem ser
vistos necessariamente de maneira independentes, mas complementares. Por
exemplo, um filme complexo em sua narrativa não resulta automaticamente que
seja uma obra que contenha coerência ou intensidade; por outro lado, uma obra
original pode ser coerente porém não complexa, e mesmo assim isso não precisa
resultar em um filme ruim. E tudo isso pode ser analisado sem depender da obra
literária no qual o filme teve inspiração(3).
(O mágico de Oz, Victor Fleming - 1939) |
Compare
dois exemplos (trechos) de crítica cinematográfica [O hobbit - a desolação de Smaug]. Obseve como as ideias de
forma, conteúdo, coerência, complexidade e originalidade citadas acima estão
presentes nos textos:
“Não acredito
que seja possível dizer que A Desolação de Smaug seja melhor ou pior do que o
primeiro capítulo, pois um complementa o outro e vice-versa. Há, claro, Smaug,
que ocupa todo o ato final d'A Desolação, e é uma adição carismática,
ameaçadora e das mais interessantes do mundo de Tolkien até o momento nas telas
do cinema. Neste caso, a antecipação foi justificada, e Smaug é um personagem
deveras admirável, que faz valer o segundo capítulo. O filme, se de alguma
forma se diferencia do primeiro capítulo, é no tom mais sombrio – talvez um
pedido dos fãs atendido por Jackson. Não há piadinhas de anões ou sobre anões
(inclusive, é o filme com menos humor de todos os cinco até aqui da hexalogia)
e, embora esses personagens não sejam tão admiráveis quanto Aragorn de O Senhor
dos Anéis (por exemplo), apresentam algumas facetas que os tornam razoavelmente
complexos (pelo menos Thorin, que apresenta sempre um ar de dualidade que
coloca em dúvida até a lealdade de Bilbo para com ele).”
Fonte: Alexandre
Koball, Cineplayers
“...os novos
personagens introduzidos em O Hobbit pouco
oferecem em termos de carisma ou personalidade: ora, se não demorei a memorizar
nomes de atores que desconhecia antes de A Sociedade do Anel
(como Dominic Monaghan, Orlando Bloom e Billy Boyd, por exemplo), posso dizer
com certa tristeza que olho para a relação de nomes contida no início deste
texto e não faço a menor ideia de quem interpreta qual anão da confraria (com
exceção de Richard Armitage, que vive o Príncipe Thorin, e Ken Stott e James
Nesbitt, que já conhecia de outros trabalhos). E o pior: não posso afirmar
tampouco que queira memorizá-los, já que não deixaram qualquer impressão ao
final das quase três horas em que os acompanhei pela Terra-média. Formando um
grupo cujos integrantes se diferenciam apenas por suas aparências físicas, os
anões de O Hobbit são um vácuo emocional e
dramático – e em nenhum momento me importei de fato com o destino que teriam ao
final da jornada. Por sorte, Ian McKellen retorna com a força que já
esperávamos de Gandalf, demonstrando carisma, autoridade e bondade, ao passo
que Martin Freeman, como Bilbo, é hábil ao explorar a hesitação e a fragilidade
do personagem mesmo mantendo-se como figura periférica no filme que intitula.”
Fonte: Pablo
Villaça, Cinema
em cena
Note que a comparação imediata
com o livro não traria argumentação alguma para defender, do ponto de vista qualitativo,
o ponto de vista da crítica. Não se afirma com isso que a crítica
cinematográfica é um tribunal que julga definitivamente a qualidade da obra,
tampouco o que o espectador deve ou não ver. Muito pelo contrário, a atividade
crítica é um incentivo para o amadurecimento analítico do espectador com
relação a uma obra de arte.
Apresentei nessa primeira parte algumas
maneiras de identificar elementos fílmicos que auxiliam na compreensão da obra;
assim, pretendi mostrar que a qualidade de uma produção deve ser analisada
somente por ela mesma, de maneira a não depender da obra literária. Na próxima
parte tentarei abordar um aspecto que-embora semelhante ao abordado nessa parte
-, é um equívoco recorrente de parte do público: a defesa de que o entendimento
do filme é sempre, ou eventualmente, melhor quando foi feita previamente a
leitura do livro.
Referências
1)
Ana Maria Bahiana, Como
ver um Filme.
2)
Richard Neupert, A
History of the French New Wave Cinema.
3)
David Bordwell & Kistin Thompson, Film
Art - An Introduction.
Nenhum comentário:
Postar um comentário