quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O que a filosofia da ciência tem de proveitosa?

                                     Tradução publicada originalmente no blog Bule Voador 

"Não existe ciência livre de filosofia; existe apenas ciência cuja bagagem filosófica é embarcada sem passar pela vistoria.” Daniel Dennett

Arrisco-me a dizer que poucos filósofos questionam seriamente a utilidade de sua de sua própria busca, e os filósofos da ciência são, provavelmente, tão auto-confiantes quanto quaisquer outros. Mas a pergunta acertadamente solicitada pelo público em geral (quando os mesmos prestam atenção a essas questões), e em particular, pelos cientistas, é: o que a filosofia da ciência tem de proveitosa? Eu penso que há pelo menos três áreas de investigações, de alguma maneira inter-relacionadas, a um filósofo interessado em ciência. Essas são: primeiro, investigação sobre a própria da natureza da ciência; segundo, a análise de conceitos chaves usados pelos cientistas; e, finalmente, o que pode-se ser chamado de “crítica da ciência” — apesar da sugestão forte e indesejada do pós-modernismo que esse termo muitas vezes pode suscitar.

Eventualmente acabarei por me dedicar mais do que um parágrafo para cada um desses três tópicos da filosofia da ciência, mas vamos antes passar por uma rápida revisão do assunto como um todo, começando com o estudo da natureza da filosofia da ciência. Esta é provavelmente a atividade que a maioria das pessoas identificaria se a elas fossem perguntadas o que os filósofos da ciência fazem. Nomes como Karl Popper, Thomas Kuhn e até mesmo Paul Feyerebend facilmente vêm à mente. Deveriam os cientistas rejeitarem hipóteses, em vez de tentar confirmá-las? Será que a ciência avança por um processo de “equilíbrio pontuado”, alternando longos períodos de quebra-cabeças com breves explosões de revolução radical? Estas duas perguntas apontam para a existência de dois tipos diferentes de investigações filosóficas sobre a natureza da ciência. Por um lado, o trabalho de Popper é caracterizado por uma atitude normativa: falsificação não é necessariamente a maneira como os cientistas trabalham, mas é a maneira como eles deveriam trabalhar. A investigação de Kuhn, por outro lado, é mais descritiva: o filósofo aqui desempenha um papel próximo ao de um historiador crítico, que descreve como a ciência funciona, mas abstendo-se, tanto quanto possível, de juízo de valor sobre a eficácia ou falta dela em práticas científicas particulares.

Sem dúvida que os cientistas têm direito às suas próprias opiniões sobre como eles fazem o seu trabalho e sua eficácia. No entanto, curiosamente, considerando a popularidade de ceticismo que os cientistas profissionais assumem quando falam em filosofia, eles parecem ter absorvido com pouca dificuldade os ensinamentos de Popper e Kuhn. De fato, é bastante comum que em livros introdutórios nas ciências ensina-se o método científico de uma forma popperiana um tanto ingênua, e não é raro encontrar cientistas em reuniões ou na mídia que falam ou escrevem sobre “mudanças de paradigma” à la Kuhn.

Seja como for, figuras como Popper e Kuhn aparecem só de vez em quando, e quando surgem fazem análises de grande amplitude sobre as ciências. A maioria dos demais filósofos da ciência, por outro lado, tendem a publicar nas restantes duas áreas de atuação. Análise crítica dos conceitos científicos fundamentais é um campo interessante na fronteira entre filosofia e ciência, uma vez que tais análises podem ser realizadas dentro do espírito de compreensão filosófica pura, mas podem também, pelo menos em princípio, influenciar a prática da ciência. Naturalmente, isso só pode acontecer quando os cientistas se preocupam em ler literatura filosófica ou frequentam encontros e congressos sobre o tema -, mas alguns deles o fazem! No final do espectro mais perto de investigação filosófica pura do que a prática científica, encontramos, por exemplo, as investigações sobre a natureza da causalidade. Embora o conceito de uma causa é, obviamente, fundamental para a ciência, a maioria dos cientistas (com a possível exceção de alguns físicos que trabalham com mecânica quântica) nunca deram-lhe mais do que um pensamento passageiro. Mais perto do que pode ser diretamente útil para os cientistas são os estudos sobre a natureza da seleção natural na biologia. Por exemplo, a questão de saber se ela pode, de alguma forma, ser significativa considerada uma “força” análogas às estudadas pela física. As respostas a estas duas perguntas, a propósito, ainda se tem muito a se aprender, no verdadeiro estilo filosófico (que é uma das coisas que realmente irrita os cientistas sobre a filosofia).

O terceiro ramo da filosofia da ciência é talvez o menos glamouroso de uma perspectiva filosófica, e ainda, possivelmente, o mais útil para a ciência: a crítica da ciência. Não me refiro aqui à literatura barata e inocente que alega que a ciência é mais uma construção social, ou que o DNA é uma invenção dos homens brancos dominadores de outras raças e do sexo oposto, ou que o criacionismo tem o mesmo status do teoria da evolução porque ambos são “histórias” produzidos por uma determinada cultura. O que eu estou me referindo é competente crítica das afirmações científicas específicas. Talvez o principal exemplo disso seja a análise efetuada pela literatura filosófica sobre a investigação científica acerca da base genética do comportamento humano, especialmente as disciplinas ditas sociobiologia e da psicologia evolutiva.

O filósofo aqui novamente desempenha dois papéis: de um lado, a ciência pode, evidentemente, ser beneficiada de uma pela investigação crítica das suas metodologias específicas e de quão bem as alegações dos cientistas correspondem às evidências que eles trazem. Mas talvez o mais importante, é a sociedade em geral que está ganhando o máximo de um controle externo sobre a comumente dita inquestionável (e inquestionável por falta de conhecimento técnico) afirmações de cientistas profissionais. Aqui, no entanto, a prática filosófica facilmente esbarra na própria ciência, e os filósofos são necessários para realmente compreender a ciência que eles estão a criticar, ou eles só vão prejudicar a sociedade e a reputação da própria prática de filosofar.

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Autor: Massimo Pigliucci

Fonte: Philosophy Now