segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Sobre a liberdade

Eu adoraria viver em um planeta livre de preconceitos contra gays, lésbicas, negros, transexuais e mulheres. Igualmente adoraria não viver num planeta em que os novos cardápios preconceituosos estão se tornando mais populares e aceitáveis, entre eles o ódio e discriminação negativa contra pessoas brancas (vide exemplos norte-americanos com a famigerada tese da "supremacia branca") e pessoas héteros (sobre isso, leiam David Banatar em The second Sexism e Daphe Patai em Heterophobia).
 



















Por ora vou desconsiderar o problema de definir com mais precisão o que entendo por preconceito (para o que tenho em mente basta considerar algo como um juízo de valor moralmente equivocado sobre alguém ou grupo de pessoas). Isso pode ser importante de ser clarificado, sobretudo porque pessoas poderão divergir em relação ao que é preconceituoso caso não tenham claramente definido os termos. De qualquer forma, devo apenas destacar que não incluo casos de estereótipos como necessariamente preconceituosos. Há uma vasta literatura na psicologia afirmando que os estereótipos que temos são muito precisos (extensivamente defendido nos textos do psicólogo Lee Jussim). Um exemplo: Homens e mulheres diferem, em média, em interesses e comportamentos (ver Why Gender Matters do Leonard Sax e Diferença essencial do Simon Baron-Cohen). Isso é um estereótipomuito preciso e não considero preconceito afirmá-lo.


 De todo modo, há uma inescapável questão factual sobre o meu desejo: Pessoas preconceituosas sempre existiram, ainda continuam existindo e, embora parece que estão diminuindo (sobre isso leiam Steven Pinker em o Novo Iluminismo), não parece que se extinguirão por completo em qualquer escala de tempo razoavelmente humana (quero dizer com isso a escala de tempo antes que sejamos extinguidos como espécie). Nesse sentido, alguns sugerem o uso da empatia para combater discriminação. Acontece que a empatia é um dos recursos mais fomentadores de criar violência que existe. Funciona muito bem como aqueles que já gostamos, e muito mal com aqueles que não fazem parte do nosso grupo (sobre isso, leia Against Empathy do Paul Bloom). Por essas e outras penso que as políticas baseadas com foco excessivo em identidades de grupo estão indo de mal a pior (sobre isso, o cientista político com viés da esquerda americana Mark Lilla tem muito a dizer em O progressista de ontem e o do amanhã).



No entanto, o que podemos garantir alcançar numa escala de tempo razoavelmente humana é culpar e punir os criminosos que fazem algum dano às vítimas. Grosso modo, podemos fazer isso atacando as três principais manifestações preconceituosas mais comuns, ou seja: Punindo os agressores físicos, os agressores verbais, ou ambos. Algumas pessoas defendem que as três maneiras são justificadas. De minha parte, salvo raras exceções, só estou disposto a aderir ao enfrentamento (via leis) das agressões físicas. Eu entendo que muita gente fica desconfortável com isso, mas essa posição parece-me a consequência (defensável) que se segue em conceder liberdade de expressão isenta de menor restrições possíveis (e elas existem, sobre isso leiam Nigel Warburton e o seu Free Speech - A Very Short Introduction). E defender a liberdade de expressão só tem sentido se a defendemos para as coisas que mais desprezemos, do contrário não é liberdade coisa alguma (sobre isso, leia o caso do esquerdista Noam Chomsky que defendeu um nazista o seu direito de se expressar e Stuart Mill no maravilho livro Sobre a Liberdade).
A razão anterior é filosófica, mas há outras de teor pragmático. Se optarmos por calar a boca de nossos desafetos (inclusive os declarados preconceituosos), ou seja, aderir as três punições anteriores, o que pode se seguir disso? Vou dar três exemplos. Primeiro, o mais óbvio, é que nenhuma ideia desaparece da mente de pessoas só porque a forçamos por lei que não seja dita. Se alguma ideia ruim aparece no debate público precisamos nos esforçar para mostrar seus erros, e só podemos fazer isso com a livre expressão assegurada. Outra, nem tão óbvia, mas que parece-me ter suporte na psicologia, é que impedir ideias circular incentiva pessoas a formar grupos clandestinos rodeados em torno de suas ideias. Espere alguns anos de repressão contra essas pessoas e logo elas aparecerão com um imenso ressentimento e ódio exponencialmente maior. A partir daí qualquer tentativa de convencê-las com a palavra já pode ser uma vã tentativa. A última, eu confesso, é a mais pessoal. De minha parte eu prefiro saber o que pensam as pessoas com as quais eu convivo ao invés de impedi-las de falar. Se algo que elas acreditam me parece condenável, eu tenho duas opções: Posso conversar com elas (já fiz, e funcionou), ou posso me afastar (também já fiz, e quase nunca falha, pelo menos para minha saúde mental).

Reconheço que tem muita gente de boa intenção que trabalha com muito afinco para resolver os preconceitos no mundo. Muito do que já foi feito ajudou bastante ao progresso humano (de novo, sobre isso leia o Novo Iluminismo do Pinker). No entanto, daquilo que ainda sobra para resolver, sou bastante cético que algumas opções que estão aí com bastante popularidade (lei contra discurso de ódio, por exemplo) possam ser eficazes em não criar problemas piores do que já enfrentamos hoje. E mais uma coisa deve ser dita: Para as minorias, nunca houve momento histórico melhor para se viver neste planeta. E reconhecer este fato já alivia um pouco minha vontade utópica descrita no início deste texto.

Olavo de Carvalho: O Imbecil Coletivo

Decidi fazer um pouco o que poucos fazem. Fui ler um dos desacordos intelectuais meus, o Olavo de Carvalho. Li bastante do famoso O Imbecil Coletivo. Para quem não sabe, o livro é uma coleção de texto sobre vários assuntos de cultura e política. Selecionei aqui três erros e dois acertos. Não ofereço nenhuma grande razão para essa desproporção aos erros a não ser pelo fato que assim o quis ou porque é mais fácil detectar erros do que os acertos. Naturalmente que nem todos vão concordar com aquilo que considero um acerto, ou erro. Mas fazer o que, é a vida.
# Os três erros
"A confusão proposital começa nos termos mesmos em que se coloca a discussão: opções sexuais. Hétero e homossexualidade não são igualmente opções. As relações entre sexos diferentes não são uma opção livre, mas uma necessidade natural para todas as espécies animais. Já o homossexualismo não é uma necessidade de maneira alguma, mas apenas um desejo. A supressão total da homossexualidade produziria muita insatisfação em certas pessoas; a da heterossexualidade traria a extinção da espécie. Colocar essas duas orientações num mesmo plano, tratando-as como simples opções livres, é falsear na base a discussão. O homossexualismo é uma opção; a heterossexualidade é um dado."
Comentário: O livro foi escrito na década de 90. Pergunto-me se o autor já não teria atualizado sua lista de leitura. Não pode ser possível que na beirada de 2020 alguém ainda pensar que homossexualismo/homosexualdiade é uma opção. Isso já é amplamente falsificado na literatura, passando por evidências genéticas, neurológicas e hormonais: Ninguém escolhe ser hétero, tão pouco ser gay. Mas retornemos a realidade, pois na verdade há dois grandes grupos que compartilham parte dessa crença do Olavo: Os religiosos ortodoxos e os novos crentes das teorias de gêneros.
"A rejeição categórica do direito ao aborto decorre de evidências cristalinas, que só uma mentalidade torpe pode negar. Mas o mal não está nas mulheres que abortam, enganadas pelo desespero. Está no defensor do aborto, que com fala mansa pretende induzi-las a tornar-se homicidas. Caso elas aceitem a proposta, das duas, uma: ou estarão criando ainda mais um motivo de culpa, sofrimento e desespero, ou então terão de sufocar no seu coração todo sentimento de culpa, tornando-se frias e desumanas como seu pérfido conselheiro."
Comentário: Aqui o senhor Olavo mostra sua mediocridade enquanto autointitulado filósofo. Ao menos nesse texto, o sujeito não consegue seguir uma linha minimamente argumentativa em favor de sua opinião. Só o que rola é xingamento e ressentimento com toque de apelo à emoção. Carl Sagan, junto com sua mulher, que nem filósofos eram, articularam uma das defesas mais acessíveis sobre o aborto que alguém já escreveu. Só mencionei isso para ficar a dica de leitura mesmo.
"A liberalização do comércio de maconha liquidaria o tráfico ilegal, sim, mas por meio da mais gigantesca operação de lavagem de dinheiro já realizada em toda a História. Não sendo mais crime, o tráfico não poderia ser punido retroativamente, e as grandes quadrilhas internacionais entrariam num negócio legal em condições de privilégio monopolístico: já possuindo as fontes de matéria prima, o know how especializado, a aparelhagem de processamento, as redes de distribuição e a organização contábil e administrativa, dominariam instantaneamente o mercado, sendo inconcebível que os concorrentes novatos tivessem aí a menor chance."
Comentário: Nesse texto o Olavo se esforça para defender algo com mais conteúdo. Minha discordância é que ele despreza duas questões importantes: As evidências empíricas mostrando dano relativo baixo da maconha em comparação a outras drogas e não mostrando evidências a favor de sua defesa.
# Os dois acertos
"Na edição de 14 de setembro do Estadinho, suplemento infantil de O Estado de S. Paulo, Eduardo Martins, autor do Manual de Redação e Estilo desse jornal, toma a iniciativa de doutrinar as crianças contra o uso de expressões como “a situação está preta”, “negra infelicidade”, “destino negro”, etc., que a seu ver são racistas.
O uso de crianças como “agentes de transformação social” é um expediente desonesto do Estado modernizador e dos intelectuais ativistas para fazer com que as novas crenças que desejam inocular na sociedade, transportadas por pequenos inocentes úteis, possam penetrar no senso comum (no sentido gramsciano do termo) sem passarem pelo filtro da discussão consciente. Esse expediente, inventado pelos Estados totalitários, foi depois imitado pelas democracias e hoje se tornou prática corriqueira, que já nem escandaliza mais uma opinião pública extenuada pelos estupros repetidos.
No caso, porém, esse ardil torna-se ainda mais perverso porque é empregado para disseminar um hábito lesivo à inteligência: para reprimir, sob pretextos políticos de ocasião, o uso de metáforas naturais que remontam às origens da espécie humana e que se tornaram, ao longo dos milênios, fundamentos indispensáveis da nossa percepção do mundo. O simbolismo do claro e do escuro vem do tempo das cavernas, das sensações primevas de terror e deslumbramento. O negro do destino negro não é o marrom da pele dos nossos irmãos, mas a escuridão da noite. É a pura e simples ausência de luz."
Comentário: Não pude discordar nem um pouco dessas passagens. O namoro pelo controle do que pode ou não ser dito (por vezes quase paranoico) que alguns setores têm manifestado é nada mais nada menos do que assustador. O que me faz pensar que não é só pelos erros do Olavo que ele conquista a parcela da direita escabrosa do Brasil, mas é pelos seus eventuais acertos também. Pelo menos aqui ele está correto.
"Assim, por exemplo, nossos educadores julgam muito natural impingir aos jovens a leitura de Joaquim Manoel de Macedo, de Bernardo Guimarães e de toda uma plêiade de autores de segunda ou terceira ordem, por serem tipicamente nacionais, ou típicos da formação histórica nacional, ao mesmo tempo em que se omite da educação literária qualquer menção a escritores de valor muito mais alto, como Da Costa e Silva, por ser muito grego, José Geraldo Vieira, por ser excessivamente português, ou Hilda Hilst, por não ter raízes em nenhum lugar conhecido no sistema solar."
Comentário: Bem, confesso que não conhecia Hilda Hilst. Então devo agradecer Olavo de Carvalho por isso. O pouco que andei lendo gostei. Nem tudo são trevas desse homem.
# Comentário final
Definitivamente, você não precisa ler Olavo de Carvalho para saber tudo aquilo que precisa saber para não ser um idiota. Ele tem aqui e acolá algumas coisas interessantes a serem ditas, ao menos nesse livro. Mas na maior parte ele me é desinteressante. O que eu espero de filosofia, e o que eu costumo ler, é infinitamente superior a isso. Eu li porque sou curioso, e tenho uma certa dificuldade de não descansar enquanto não dou conta de matar a fome da curiosidade.
Outra coisa a se dizer é que nada do que ele disse está contido apenas nos texto dele. Eu aprendi poucas coisas novas até então, a não ser coisas pontuais como a sugestão da Hist que mencionei. Alguns dos temas que ele aborda você encontra em autores muito mais competentes e menos carregados de palavrões. Olavo de Carvalho diz que este livro é parte de uma trilogia, e recomenda fortemente ler os demais livros. Bem, eu não pretendo fazer isso. Minha curiosidade, ao menos por enquanto, já está sanada. Ademais, o homem ainda não está isento de bizarrices escritas por aí, recheada de teoria de conspirações e outros conservadorismos de costumes que não subscrevo (mas que devemos a ele o direito de pronunciá-las). De maneira geral eu diria que o Olavo sofre de um problema que vários outros guias de culto sofrem: Muitas pessoas que o cercam são mais olavetes que o próprio Olavo. Nada de novo nisso. Tem uma penca de gente aí que é mais foucaultiano que o próprio Foucault, que é mais freudiano que o próprio Freud, e por aí vai.